29 de abril de 2016

A gaveta escondida #8: “A FORMA SOLTA”

Com muita pena, tenho de confessar que este foi mais um dos contos rabiscados durante as interessantíssimas aulas de História da Língua do 4º ano da faculdade (cf. “A gaveta escondida #1”), disciplina que, como terão percebido, me marcou muitíssimo, talvez não pelas razões esperadas. Um conto com muito “eu”, muita casuística, muito tecnoleto da linguística (alguma coisa ia entrando, suponho, à medida que a aula progredia), mas algumas frases que me enchem as medidas: “Houve um tempo em que me atraíram as filosofias, a vocação irracional para o absoluto. Contemplativa no meu rosto concentrado, absorvia-me toda na questão redonda da verdade. Contingências várias confrontaram-me então com as histórias, e aprendi no constrangimento de cada momento que as verdades mudam sempre que muda o rosto sobre elas.” Não está mal.

A FORMA SOLTA

Vario tanto o meu penteado e a cor dos meus cabelos, que já não me lembro se nasci com eles lisos ou ondulados, louros ou castanhos. O meu roupeiro é uma balbúrdia inusitada de sedas fluidas, bordados densos, lãs mornas, impermeáveis gelados, e a minha mão, ao escolher de entre eles, hesita ante esboçar um movimento gracioso de ballet ou atrever-se com um reflexo concentrado e firme de atleta. As minhas gavetas são uma desordem de escovas, lenços, pulseiras, perfumes – uns, que desde sempre utilizei, outros, que nunca me pertenceram. Acontece-me entrar irresistivelmente num loja, para comprar algo de que não tenciono fazer uso a curto prazo, algo que nem me agrada de momento, mas que impele a ser guardado para a ocasião. As estantes transbordam-me em caixotes pelo soalho, e, nas suas prateleiras, o mesmo pó e o contacto forçado aproximam em súbita empatia Gautier e Baudelaire, Nietzche e Platão. Quando é preciso – é muitas vezes preciso –, o meu olhar turvo selecciona com eficiência e rapidez a leitura ou a aparência requeridas pela estratégia do momento. Movo-me em conforto no meu lugar absurdo, desorganizado, a que deve assistir contudo um qualquer tipo de arrumação mental, que é concerteza eu mesma. O meu camarim e a minha consciência são espaços livres onde só eu me faço convidada, onde permaneço muito pouco, mas sempre inteira e satisfeita.
Sou uma presença feminina e requisitada. Os meus álbuns dão conta dos itinerários sociais e humanos que eu me tenho feito percorrer. Poetas e banqueiros, ociosos e marginais, repousam lado a lado, numa solidariedade contrafeita, sobre páginas escuras de cartão, sem precisarem da luz de legendas. Eu colo fotografias a par e passo, com uma ternura irónica e um empenhamento sabedor, e os meus olhos irrisam-se perante as diversas imagens e cores por que passeiam, sorridentes, pensativos. As vias divergentes do meu conhecimento são uma exigência do curso de vida que para mim planeei. Houve um tempo em que me atraíram as filosofias, a vocação irracional para o absoluto. Contemplativa no meu rosto concentrado, absorvia-me toda na questão redonda da verdade. Contingências várias confrontaram-me então com as histórias, e aprendi no constrangimento de cada momento que as verdades mudam sempre que muda o rosto sobre elas. Empenhei-me, pois, na verdade de mim mesma.
A verdade para dentro ou a verdade para fora? Se a mentira for num homem por carácter mentiroso, a que corresponde senão à sua verdade interna? Semear ilusões pelo exterior pode ser uma consolação piedosa. Eu sei que mentir sempre foi para mim dar a cada outro a verdade única que ele aceita e merece. Isto faz de mim uma mentirosa natural, com tudo o que uma natureza exige, claro, de construída opção. E a minha vocação para o amor é tão grande que sou a única a dar exactamente a cada um o que ele espera de mim, e assim rio ou choro, falo ou ouço, numa volubilidade apaixonante que faz as delícias dos meus admiradores. A minha fama é tão firme, o meu sucesso tão completo, que circulam por vezes boatos exagerados a meu respeito. Alguém garantia há uns meses atrás que eu… Lembro-me que na altura sorri, não descontente com a calúnia. A calúnia é a mais grave das mentiras. Agradou-me que, por uma vez, fosse o outro, ainda que num acto involuntário, a ir ao encontro da minha natureza. Que houvesse uma anónima alma gémea da minha foi, mais do que se possa pensar, um considerável conforto metafísico. São pequenas compensações como essa, e não apenas a minha conta bancária, que me fazem, afinal, perseverar na falsidade…
E veja-se como eu sou tolerante. Não me importo que, de longe a longe, alguns se apercebam do estudado dos meus gestos, do limado das minhas palavras, do cinzelado dos meus olhares… É raro, e só mesmo seres extraordinariamente atentos me conseguem detectar essas falhas. Há um jovem poeta que desvelou a minha atitude e, desconcertado, critica uma prática que chama de hipócrita e perigosa. Tenho tentado mostrar-lhe em vão que a mentira só existe em mim, e não na verdade de cada um dos com quem me relaciono. (Ele é a primeira pessoa com quem discuto a minha mentira verdadeira e está definitivamente assustado.) Se alguém escutar mais do que as estritas palavras que lhe endereço e se tentar determinar-me, achará facilmente a mentira. Mas não é suposto ninguém tocar nela, descodificá-la, semantizá-la, convocá-la a si, aos seus sentimentos, aos seus raciocínios. Quando ele me acusa com insistência de ser vã, desonesta, abusadora, apetece-me mostrar-lhe que ninguém lê de mim o que eu sou, mas só o que está a enformar-me. Há uma fatalidade incontornável. A comunicação entre os seres é descontínua. Há folgas inevitáveis entre as almas, sinapses mentais inestreitáveis. Viver, digo eu, é saltar das oclusões mais castradoras às fricções mais inseguras, passando sempre ao lado da coroa da vida.
O meu choro agora não me aborrece nem me contraria, porque é a minha verdade do momento. Mas como missionária inconstante, enfermeira flexível votada aos espíritos, eu devo esquecer-me dele, não ficar presa à verdade risível do momento, mas conformar-me à verdade total do meu ser. E esta obriga-me a querer parecer bem ao meu pobre poeta, isto é, distante e insensível… como ele espera. É inútil e cínico qualquer esforço de sinceridade. Devo redimir a mentira, que é a minha verdade, ajustando-me à verdade dos outros. Devo proclamar a verdade, que é a minha mentira, asfixiando-a e submetendo-a à mentira que ele aguarda de mim. A diferença de critérios, no tratamento dele e dos outros, não me estorva, senão no que pode insinuar de sintoma de fraqueza: é impossível, ao mesmo tempo, guardar fidelidade a leis diversas…
Felizmente a minha habilidade distrai-me da melancolia, e insensivelmente encontro, num monte desconjuntado, o par conveniente de sapatos. Por reflexo, assumo ao calçá-los o discreto andar certo, a respiração silenciada, o ricto suavizado. Percorro o curto espaço até à minha porta, desviando-me imperceptivelmente dos leitos de roupa e dos caudais de livros alastrados pelo chão, e aí chego, incólume no meu disfarce do momento. Gesto livre e preciso, o de fechar à chave a entrada do meu mundo. E só de repente me envergonha pensar que não posso levar ao seu encontro a verdade maior e perturbante que é amá-lo.

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