Dando seguimento à operação de resgate na gaveta escondida das minhas primaveras literárias, é a vez de recuperar o pequeno conto “A viúva alegre”, uma apropriada e recatada narrativa de luto e viuvez… Diz-me a memória que tinha dezanove anos, estava de férias no Algarve e um inseto ferrou-me tão violentamente que o meu braço inchou e a febre instalou-se. O veneno e o calor terão escrito por mim, de um jato, pela madrugada adentro, porque não me lembro de mais nada. No dia seguinte o farmacêutico receitou, a febre foi-se embora e o talento possivelmente também…
A VIÚVA ALEGRE
É difícil arranjar um cangalheiro, na minha terra, que nos apareça em casa àquelas horas de domingo. E quando arranja, a gente sujeita-se. Eu, foi porque já não podia mais. Não aguentava mais aquilo sozinha. Há dois dias que eu e ele esperávamos. Ele, muito repousado, estendido quase levemente por cima da cama feita, os olhos agradecidos afundados para sempre lá para a sua escuridão. E eu inquieta, sem saber o que havia de fazer mais. Os restos dos medicamentos já estavam no lixo. Não havia aspirinas, remédios para as dores que se pudessem aproveitar. A aparadeira estava despejada, lavada duas vezes com lixívia, e secava ao sol do terraço, no meio dos vasos de begónias. A roupa que fora dele estava embrulhada e repartida por sacos pretos, à espera de que o padre a recolhesse, no segundo domingo do mês. Os vizinhos já tinham dado os pêsames há muito tempo, mais ou menos quando tudo começara, quando se soube (nestas coisas de hospital, vida, morte, doenças, abortos, gravidez, os vizinhos, pelo menos na minha terra, são sempre os primeiros a saber) que ele ia morrer. A minha cunhada, inocente de tudo, mandara uns dias antes um telegrama de França, a dizer que já éramos tios do João Miguel. E foi por não aguentar mais os nervos que eu, mesmo sendo domingo, finalmente os chamei.
Apareceram-me dois homens, um velho e um novo, muito parecidos e amarelados, quase tão pálidos como o morto. Entraram-me muito respeitosamente em casa, demoraram muito tempo a limpar os pés, quase me esgaçavam o tapete. E sussuravam de cabeça inclinada, como se tivessem medo de acordar alguém. E eu, meia parva, ao princípio respondia-lhes também baixinho, como se houvesse alguém para acordar. Depois de me darem os seus sentimentos, perguntaram-me onde estava a minha família, quem estava ali para me ajudar. Apontei-lhes o meu quarto. Estava lá a minha família toda. A minha falecida mãe, com o cabelo aos caracóis, ao lado do meu irmão pequeno, no dia da primeira comunhão. Era uma fotografia, claro. E à direita, deitado, o meu marido morto. Estava ali a minha família toda. Infelizmente, nenhum deles me podia ajudar.
Mas os cangalheiros, profissionais experientes, compreenderam que era para entrar. Foi aí que tudo começou. Traziam fita métrica, amostras de pano, parecia que iam dar a provar um fato. Ao chegarem perto dele, o mais novo fez uma vénia discreta, como se o meu homem fosse um santo, antes de começar a apalpá-lo, e o mais velho começou a tirar medidas, parando de vez em quando para esfregar os olhitos acizentados, como se fizesse questão de choramingar. Pelo meio, fazia-me perguntas estúpidas. Se queria de pinho ou de mogno, de que cor seria o forro, se não podia trocar a camisa do morto, para dizer melhor com o caixão. Aquilo começou logo a enojar-me, e o descaramento deles, sobretudo do novo, a mirarem-me de alto a baixo, muito curiosos com o meu decote, com as minhas coxas, a quererem imaginar que utilidade lhes daria o falecido. Mais do que o ar esfomeado deles, irritava-me o desprezo com que mexiam no corpo do meu morto, a maneira como lhe metiam as mãos sapudas, o nojo que eu sabia que eles tinham da sua carne gorda.
Nos últimos tempos, ele entrava no quarto de lado. Foi aquela doença esquisita que lhe deu essa obesidade flácida. Não desfigurou, mas deformou o meu homem. O médico disse-me logo que aquilo só podia piorar. Quando ele ficou de cama, mais para o fim, puxou-me discretamente para a cozinha e disse-me que estivesse preparada. E como ele próprio, o médico, era um homem preparado, entregou-me a certidão de óbito, toda bem feita, só faltava a data. Assim, já ninguém tinha que se incomodar. Eu não tinha de chamá-lo à pressa, e ele não tinha de deixar o carro na estrada e fazer quinze minutos de poeira a pé, sabe-se lá a que horas, pelos caminhos que vêm dar ao meu lugar. Entretanto o papel perdeu-se, há-de ter ido parar ao lixo no meio dos embrulhos velhos, e por culpa da minha palermice o médico sempre teve de voltar.
Entretanto eu não dormia mais na minha cama. E não era por esquisitice minha, não era por ter nojo dele. É que simplesmente já não cabíamos ali os dois. Debaixo de tanta gordura, eu não estranhava o meu homem. Reconhecia-o, o que era pior. E estranhava-me a mim. Lembro-me que no princípio eu contava, naturalmente, que também fosse engordar. Esperei muito tempo, a olhar para as pernas, para a barriga, mas estava tudo na mesma. E para cúmulo ele, que então já nunca me dava um beijo, que passava o tempo todo calado a ver televisão sem som, quando estava menos triste, chamava-me ao pé dele, puxava-me um braço, e dizia-me que eu estava mais magra. Não era por mal, claro. Era a maneira de ele me agradecer. Eu era magra e saudável, ele era gordo e doente, a vida corria-me nas veias e fugia das dele, e mesmo assim estávamos juntos, mesmo assim eu estava com ele. O meu homem sempre teve um modo simples de mostrar que percebia as coisas.
Escolhi tudo o que estava mais à mão, tudo o que o velho me disse que era mais fácil de arranjar. Eles tinham trazido um caixão com eles, tamanho grande, devia dar. Eram homens práticos, afinal. Saíram-me pela porta fora, arrancaram decididamente uma espécie de caixote enorme da carrinha todo-o-terreno, e voltaram a entrar, desta vez sem cerimónias, deixando um rasto de terra na tijoleira do chão. A minha casa era toda estreita. Tivemos de arrastar a consola, de levantar a passadeira do corredor. A porta da rua tinha ficado aberta. A filha da vizinha já se chegava à cancela, de pescoço esticado, espantada com a movimentação. É que os meus cangalheiros começavam a ficar preocupados. A porta do quarto era tão estreita, havia que estudar a melhor maneira de tirar o corpo dali e enfiá-lo no caixão. O novo dizia que o mais fácil era pegar no falecido, carregá-lo ao colo como um bebé frio e gordo, sair do quarto e só depois metê-lo no caixão. Mas o velho, num repente de sensibilidade, protestou que a ideia era degradante, que o morto devia sair do quarto arrumado, onde é que já se viu, despachar um defunto no corredor. Claro que isso tudo já não tinha nada a ver comigo, eu era apenas uma viúva inútil, e aquilo eram segredos da profissão.
Fui respirar ao terraço. O gato tinha resolvido voltar mais cedo do que o costume, trazia o pescoço arranhado, o pêlo todo manchado de sangue e de ferrugem, devia ter sido algum arame. Alguns metros abaixo, no meio do caminho, as minhas vizinhas coscuvilhavam e espreitavam-me disfarçadamente, como sardaniscas ao sol. Dentro do quarto, os homens berravam. A coisa estava difícil. O morto no caixão era muito pesado e o espaço era apertado para grandes movimentações. Reparei que afinal eram muito mais fortes do que eu tinha pensado, conseguiam virar o caixão para cá e para lá e resmungar um com o outro ao mesmo tempo, sem perderem o fôlego.
O caixão, largo de mais, ia e vinha mas mãos deles, duríssimo, meio entalado, a esmoucar-me as traves da porta, cada vez com mais força, cada vez com mais lanço. De vez em quando, a cara do morto aparecia, em sobressaltos, com um sorriso frio que se tornava eterno na minha memória. Senti de perto o cheiro a suor dos homens. Falavam cada vez menos e grunhiam cada vez mais, como dois bichos. O esforço arrancava-lhes das dobras um líquido amarelo e viscoso. Não sei se foi isso que me fez reparar. Encostei-me à consola, de costas, de modo que via tudo. E a rigidez do caixão do meu homem, que nem sequer era dele, coitado, a rigidez forte emprestada ao caixão do meu homem, a roçar o estuque das minhas paredes, a arrombar-me a porta, lembrou-me, com um baque, o tempo em que a rigidez era outra, total, dele, por mim adentro. No segundo em que eu sustive a respiração e apoiei as mãos atrás, à toa, no tampo frio do mármore, rebolou um jarro, caiu, quebrou, mas eu tive uma recordação digna do meu homem. Uma recordação do que ele fora, e não do cadáver que todos pensavam que ele era agora, nem da doença que o apodrecera. Os homens olharam-me assustados, interromperam-se, olharam os cacos no chão e olharam o corpo, como se procurassem estilhaços. Estavam embasbacados perante o brilho dos meus olhos e a minha repentina palidez. Foi então. Não sei o que me deu. Soltei uma gargalhada, uma gargalhada enorme, a maior gargalhada da minha vida toda. O gato bufou-me, ameaçado, os homens espetaram com o caixão no chão e as vizinhas chegaram-se-me à porta, para esclarecer o barulho.
Foi então que eu ganhei uma fama de viúva alegre.
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