Glorioso 1991… Passo o ano em Pau (França), como aluna Erasmus. Novas experiências, novos amigos, novas leituras. Entre outros, descubro Giono, Michaux, Céline… O absurdo, a violência, a perfídia (esta que desde cedo se manifestou, tenho de ser sincera, no que escrevi: possivelmente desde a redação infantil em que, no desenlace de um diálogo banal, a Senhora Galinha desejava ao Senhor Peru «um Feliz Natal»…), entram definitivamente no meu estilo. E assim surge “Ângela”. Mauzinho, o conto, em todos os sentidos, penso eu agora. Mas, para que não me acusem de narcisismo, revelando só textos jeitosos, também ele sai da gaveta escondida. Nem que seja para nunca mais o ver.
ÂNGELA
Um jeito bruto de pedra e a obsessão em não se modificar: Ângela sempre me pareceu perfeitamente ridícula. Um porte desastrado, um timing perpetuamente desajustado, uma teimosia na palavra errada, uma total falta de tacto. A minha primeira reacção ao vê-la tinha sido a de pensar que precisava de óculos, por estar a ver uma imagem desfocada: olhos, nariz, orifício bucal, tudo naquela cara parecia a façanha temporária de um acaso mauzinho, que tivesse ido buscar isto acolá, aquilo além, e amassado o conjunto. O engraçado era observar o carinho que ela votava ao arranjo deselegante das suas feições. Ângela achava-se bela, o que a tornava insuportável. Uma mulher feia pode fazer-se discreta, amável até, desde que não insista em exibir orgulhosamente o seu rosto. E esta, francamente, era toda arrogância por cima do pescoço gordo. Sinceramente, nem eu posso dizer que a Ângela era feia. Cada traço seu poderia ser aceitável, se isolado: o conjunto é que era um enxerto imperfeito, desconjuntado, vergonhoso. Por isso, era uma tremenda ironia ver até que ponto ela gostava de si própria e teimava em não mudar.
Ora eu sou também um homem teimoso, adoro os desafios difíceis. Apostei perante meio mundo que haveria de deitar abaixo a Ângela e reconstruí-la das ruínas. Nestes casos, há sempre quem pergunte: por quê tanto interesse nela?... Por quê?!... Desfastio, acho eu. Cansaço das mulheres mais ou menos perfeitas, em que a simetria do olhar casa com a curva dos lábios com rigor. E também irritação. Enerva-me, dum modo geral, todo o tipo de gente com a mania de que é boa sobretudo quem, decididamente, não é. É uma obra de caridade que eu faço à humanidade, limpá-la de vez em quando de alguns torrões abjectos.
No entanto, usar de força com a Ângela seria inútil, como tentar arrancar lapas com os dedos. Ela é o tipo de pessoa que se fortifica com a ameaça, que se isola com lágrimas raivosas a qualquer justa crítica. O que me restava fazer?... Namorei a Ângela. É verdade. Não há nada de estranho nisso. A única maneira de corromper um organismo horroroso mas são é a do vírus subreptício, que o torna a pouco e pouco vulnerável. Só por um vírus de amor rasteiro, estupidificante, a Ângela poderia ser vencida. Só num momento de singular fragilidade eu conseguiria lançar-lhe o insulto que a derrubasse, a enlameasse, que, em última análise, a purificasse da sua cegueira. A Ângela, claro, caiu como um patinho feio, muito mais facilmente do que certas mulheres a quem uma beleza real mas mediana traz sempre um acompanhamento de insegurança que as faz serem desconfiadas. Iludida consigo mesma, a Ângela achou que podia perfeitamente ter-me iludido.
Quanto a mim, joguei o meu papel na perfeição, o que não foi nem fácil nem extraordinariamente custoso. Questão de habilidade. E estômago. Afinal, apenas mais um jogo. Beijá-la, por exemplo, era uma sequência de responsabilidade, de gestos concatenados, um exercício para profissional. Para não sucumbir, eu tinha de me concentrar primeiro nos seus olhos azulados, abstraindo-me das sobrancelhas ou da cana do nariz que, francamente, já não tinham nada a ver. Depois, era aproximar-me dos lábios, evitando encarar aquela fileira de dentes horríveis, encavalitados, a avançarem sedentos para mim. Sozinhos, os lábios dela passavam por macios. Mas assim que a sua língua se aproximava da minha, era logo a imagem degradante dela a mastigar que me vinha à cabeça, quando eles ficavam esguios e gordurosos como bichas. Enfim, eu safava-me. A custo, mas safava-me.
E conversar com a Ângela? Desafio supremo ao meu self-controle. As suas ideias estúpidas, impermeáveis, rígidas, a escoarem-se numa voz engrumada, incerta, são o que eu conheço de mais detestável. Perante o mais puro céu azul, a Ângela seria capaz de convencer-se de que iria chover, e ofender-se com quem quer que ousasse sugerir o contrário. Houve alturas em que eu pensei que iria estourar, que seria impossível conservar por muito mais tempo a máscara de plácido encantamento, de suave acordo... Tentei distraí-la, distrair-me, com saídas, animação. Mas entrar com ela num lugar público representava um desafio colossal. Por entre chávenas partidas, molhos entornados por cima da toalha, hesitações parvas ante portas que não se sabe se são de puxar ou de empurrar, o seu sorriso cândido, pardacento, parecia a qualquer momento a gota de água que me fizesse transbordar. Uma vez, na discoteca, cheguei a ter pena dela, desamparada, desengonçada, em vias de se desintegrar. E muito satisfeita, vermelha, toda inchada de orgulho por eu estar ali, consigo. Se não fosse o Rui chegar, e entretermo-nos muito a rir das maneiras dela, acho que teria ido arrancá-la piedosamente àquele suplício. Assim, ela dançou sozinha até não poder mais, até o cabelo lhe pingar oleoso na testa, até me sugerir, esgotada, rendida, que fôssemos indo.
Porém, lentamente, à medida que a Ângela se apaixonava por mim, eu ia tendo mais margem de manobra para a contestar. Comecei por conseguir convencê-la de ninharias, contrariá-la em pequenas coisas, vendo, satisfeito, que ela se submetia às minhas decisões. Lembro-me, por exemplo, de um cachecol horrível, peludo, que ela enrolava à volta das suas bochechas encarnadas e lhe dava a aparência de um bicho. Pedi-lhe que não o usasse, e ela, para surpresa minha, acedeu, ficando na mesma feia, mas, realmente, menos bestial. Mas nenhuma pequena concessão da Ângela significaria para mim a vitória. Limitar-me a isso seria como pensar que, por estar retocado ou maquilhado, um monstro é menos um monstro. O que eu tinha era de a derrubar.
Então, uma noite que foi tudo menos bela, convoquei todas as minhas forças físicas e espirituais e decidi levá-la para a cama. Confesso que tinha adiado a coisa o mais que pudera, dominado por uma espécie de cobardia sonolenta, mas agora era urgente demais. A Ângela poderia começar a estranhar o meu pudor, o meu respeito. E depois, a perspectiva de a rebaixar animava-me a esse supremo sacrifício - o último, o irreversível, que me libertaria da minha cruz pesada e a ela do seu jeito de ser. Ui... Fui-me safando o melhor que pude entre aquelas formas despropositadas, ossudas em demasia ou lassas como carne morta. A certa altura, não pude mais, e, achando que a espécie de grunhidos da Ângela anunciava a sua rendição, sussurei-lhe: "- Meu Deus, és feia... És estúpida de todo...". Olhos cerrados, beiços arquejantes, a mulher parecia satisfeitíssima de si e de mim, como se não tivesse entendido o insulto. Então exclamei, abanei-lhe a cabeça com brusquidão: "- Ouviste?!... És horrível!...". Um segundo de angústia, até ela abrir aquele olhar azul desbotado, feito estranheza primeiro e em seguida doçura: "- E tu... Tu amas-me mesmo assim, querido...". Não sei o que foi mais embaraçoso, se a sua mão suada a acariciar-me o cabelo como se eu fosse um caniche, se aquela chuva remelada de nomes ternos que se lhe seguiu... Acho que foi imaginar a minha própria cara incrédula e envergonhada. Eu, esforçado, sujo, preso num abraço da Ângelazinha. O que é que eu fiz?... Olhem, adormeci, rezei para não acordar. Mas acordei, com o cheiro esquisito de ser um homem besuntado, com a dor do café com leite a ferver que ela, com o tabuleiro e as torradas, despejou, desastrada, servil, por cima de mim...
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