Escrito mentalmente no saudoso ano de 1994, entre quotidianas
idas e vindas de autocarro entre Gaia e Porto, seguidas de idas e vindas de
comboio (sim, na altura era comboio) entre Porto e Castêlo da Maia, e
posteriormente transcrito na velha máquina de escrever do meu pai, “O primeiro
dia a sério de calor” ficciona um acontecimento banal. Pontos nevrálgicos?
Talvez um certo despudor da narradora protagonista e uma certa cedência do
sentido à musicalidade, que eu aprenderia a controlar mais tarde e a usar a meu
favor (acho...). Aqui vai, sem timidez nem mais comentários.
O PRIMEIRO DIA A SÉRIO DE CALOR
O ar está carregado, nota-se quando se respira, carregado com os próprios pensamentos, com o peso das sensações. O peito aquece por dentro, a chuva não veio aliviar os corpos, há uma espécie de desmaio depois de cada inspiração. O dia acaba tarde para quem entra neste autocarro, o autocarro lento da última hora de ponta, sujo e arrastado, como um bicho a morrer de calor.
Aqui sentada, arrumada, comprimida pela coxa forte da mulher ao lado, sei que estou no meu melhor. Arrumada, espremida, esmagada, sei que estou no meu melhor. O cansaço fica bem com o meu rosto de feições marcadas e olhar grande, que dá até onde eu quiser. O suor leve que me escorre da raiz dos cabelos aumenta o meu encanto estranho, que hoje eu sinto à flor dos poros, como uma doce irritação. Com este rosto, com estes olhos, com este suor, hoje, nem sei como me sinto, mas posso ser quem quiser.
A visão surge, como uma imagem subitamente definida, coada pela sonolência, tremida pelo cansaço, torcida apesar de tudo como mais uma gota de transpiração. Abrem-se-me os olhos por dentro dos olhos, e à minha frente encontro o Mick Jagger, em versão revista e melhorada, os olhos castanhos claros, possivelmente verdes, aqui dentro sem sol, como é que a gente há-de saber. O nariz perfeito, os lábios perfeitos, imensos, cabiam perfeitamente os meus por cima, e ainda sobrava muito espaço macio. Os cabelos ondulados, ásperos, um pouco crescidos, o perfil quase colado ao vidro, o que será que procura, os olhos em ponto de mira, no meio do calor. O corpo todo grande e maciço, mas gordo de modo nenhum, e magro nem pensar, e mesmo assim a dar a impressão de que ainda vai crescer. Meu Deus, como é que a gente há-de explicar isto, ou pior, como é que a gente há-de resistir.
Acho que o aborreci um pouco, ao sentar-me à frente dele, obriguei-o a recolher as pernas grandes, que tinha estendido, quase arrumado, por cima do meu lugar. Há-de ter pensado, porra, tantos lugares vazios, e a gaja vem sentar-se mesmo aqui. Há-de ter-se dobrado, contrafeito, desdenhoso, com o jeito calmo das pequenas contrariedades.
Ao meu lado direito há a tal mulher com buço e pêlos nas pernas há muito esquecidos, eu sei que é indecente estar a olhar e a pensar estas coisas, mas não faço por mal, talvez a mulher nem dê por mim, coitada, tem um ar cansado, de coisa enxovalhada, o que ela não deve ter que fazer ainda antes de poder ir dormir. Costumo achar deprimente isto tudo, os rostos cansados ou irritados, ou as duas coisas, os corpos pesados, corcundas, carregados, sacas de compras, sacos de viagem, casacos que talvez sejam precisos de manhã cedo e depois só servem para atrapalhar. Costumo distrair-me mesmo assim, escolho uma cara à sorte, macho ou fêmea pouco importa, o que quero é um rosto mais ou menos desconhecido, para observar, dissecar, e depois diluir. Estudar-lhe as rugas, as manchas, as expressões, as cicatrizes, os cabelos caídos sobre a gola, os sinais de beleza e aqueles que não são. Adivinhar-lhe a vida, a rotina, o trabalho, a roupa com que anda em casa, as desgraças, as paixões. Pensar no que pensa, no que faz, se rói as unhas, se bebe um pouco mais do que convém, se se enerva com a sogra ou com os filhos, se sente a falta de... Pensar se é feliz, se mais ou menos como todos dizemos que somos, se se sente bem consigo mesmo ou se nem sequer sabe o que é pensar nisso. Mas ele não me veio à imagem como nenhum desses, não o procurei, não me esforcei, sentei-me em frente dele e ele estava ali.
Ao fundo, no banco de trás, tu, o outro, fitas-me com insistência, entre o empenho e o deslumbramento. Não sei como te hei-de descrever. És tão banal que quase te tornas querido. Tens os olhos castanhos, os cabelos castanhos, lisos e curtos, como deve ser. Não gosto muito da cor da tua pele, baça, amarelecida, oxalá seja só desta luz de dentro, ou pelo menos da falta de apanhar sol. Tens a boca fina, larga, um pouco esguia, só isso me agrada em ti, é capaz de ser bonito, andar à procura das expressões dela, perseguir um beijo teu.
Mas tenho as minhas pernas entre as pernas dele, a minha perna esquerda encostada à perna direita dele. Não tenho culpa, não fiz de propósito, se pequei não foi por maldade, foi só por omissão, por preguiça, por falta de força, eu sei lá, o abandono do calor. Parece-me a única vez que andei de canoa, devia ter a idade dele, foi no Verão, num campo de férias, agora as pernas dele fazem-me lembrar a canoa estreita em que andei. Seria mesmo difícil eu não estar assim. Espero mesmo que não se importe, a minha perna fina e musculada, a minha pele suada dos collants, encostada à sua perna áspera e quente dos jeans.
Há uma altura em que os nossos dedos quase se tocam, é inevitável, perigoso, estamos ambos a desentorpecer as mãos. Vejo-o no reflexo empoeirado do vidro, que dedos compridos que ele tem, e parecem macios como os de um menino, mas sujos não sei de quê, espero que seja só a poeira, não quero nem pensar em cimento, não posso acreditar que um rapaz tão lindo venha a acabar trolha, a usar mochilas de ganga desbotada e uma tatuagem mal feita no braço. E no entanto deve ser mais ou menos isso o que o espera, quem se mete em autocarros destes mora em lugares chamados Cabeços, Candal, Rego do Cão. Não sei o que faço aqui no meio, nem sei porque me sinto tão bem, eu devia era ter carro, ou apanhar uma boleia, não pertenço a este ambiente, definitivamente hoje não me sinto ninguém. Agora só alguns milímetros nos separam, o trânsito é que não anda, nada treme, ninguém respira, o autocarro está parado, senão é bem provável, digo eu, ou então deliro, que ele acabasse por me pegar na mão. Acho que ele também reparou, porque me olha de repente, e me olha com o rosto todo, daquelas coisas que duram segundos, mas que se sentem no fundo, afinal ele não via só através do vidro, soube ver o que havia nele, e havia a minha imagem, a minha sombra, havia eu.
Começou finalmente o jogo, os olhares misturados, os olhos nos olhos, como se costuma dizer, aquele jogo de espelhos repetido e misterioso, em que ficamos entre as pestanas do outro, em que de tanto nos vermos fora de nós, corremos o risco de nos perder. Agora é como se os olhos dele fossem o meu norte, de repente mais doces e mais fortes, mais límpidos que toda a poeira e o mau cheiro, mais duros que os corpos amolecidos pelo calor, não me consigo desprender. Assuntos complexos estes, dos olhos, dos gestos, das durezas, dos significados, o meu Mick afinal é um menino forte e doce, e eu acho que ele sorriu para mim.
Só tu ao fundo interferes, como um ruído tosco, os olhos atirados para cima do meu corpo. Tenho a impressão de que já me conheces bem, de que já me viste muitas vezes antes, talvez doutras viagens de autocarro, ou pelo menos das filas da paragem. Talvez já tenhas reparado em mim sem eu ter reparado em ti. É provável, que os teus olhos dizem qualquer coisa, parecem pedir qualquer coisa, têm uma expressão ligeiramente severa ou magoada, como se sentissem ter direito a qualquer coisa que eu lhes negasse. Não me lembro, desculpa, não me lembro, afinal a vida é mesmo justa, os tais caminhos tortos e insondáveis, afinal todos temos direito a semear paixões nos outros, paixões distraídas e insolentes. Pensei que era só eu a sofrer sempre, a pensar em quem não pensa em mim, e afinal agora encontro este rapaz, que está farto de me ver, de me desejar, não tenho provas disto, claro, mas há quem diga que só se cobiça aquilo que se vê todos os dias, e é o que me quer parecer. Talvez haja mais como tu, talvez mesmo aqueles em quem eu penso. Não sei se isso me consola, tenho o pensamento adormecido, é como se todos me entrassem de repente pela cabeça adentro, e eu nem sentisse nada, por onde é que andará o meu amor. E no entanto olhar para ti põe-me triste, porque tu estás triste, e eu não seria capaz de jogar contigo aos olhares. Se estivesses mais perto, talvez até me visse nos teus olhos, mas era diferente, o cabelo, o peito, a boca, tudo, mas as minhas pernas entre as pernas do outro.
Tenho de me levantar, o autocarro vai seguir sem mim, quem se irá sentar no meu lugar, quase que sou eu a decidir, vai ser aquela senhora meio obesa, que atrapalha a passagem no corredor. Há um velhote ao canto a ler o jornal, o título grande diz-me qualquer coisa, deve ser pelas cores fortes, mas não consigo descobrir o quê e já não posso confirmar, o leitor dobrou a página, tem bigodes fartos e um boné coçado. A memória é assim, aquela que chamam de provisória, frágil como um fio de cabelo, qualquer sopro a pode espantar.
Como é que a gente se despede duma pessoa que não conhece, alguém que nunca se teve, que nunca se vai ter. Que disparate, os autocarros são mais fiéis que muita gente, havemos de nos encontrar mais vezes, quem sabe numa tarde como esta, de nuvens e de calor. O melhor é fazer de conta que não me vou embora, tenho vergonha de lhe lançar um olhar de despedida, não vai haver nenhuma despedida, só um até logo, amor. Vou segurar com firmeza a minha pasta, gesto simples e claro de aviso, quase sinto a pergunta dos seus olhos a pairar-me sobre a palma da mão. Vou ajustar no ombro a alça da carteira, e agora também tu já sabes que vou sair, para ti olho, não sei por quê, tenho medo de esquecer a tua cara, parece-me que tens o mesmo medo, também. Não desesperes, miúdo, o mundo é mesmo assim, dos mais fortes, dos mais bonitos, não há nada a fazer. Não fiques triste, isso passa já, um dia vais conhecer uma boa rapariga, uma mulher de coração melhor vai gostar de ti, pareces fiel, tens cara de homem fiel, há quem aprecie, eu própria aprecio, às vezes, talvez quando está menos calor. Que disparate, que conversa a minha, como se tu não soubesses, a questão não é essa, é o silêncio, é a ausência, ninguém suporta uma recusa, nem que venha não se sabe de onde, meu Deus, leva-me embora, quero desaparecer.
Qual a impressão que deixo, ao levantar-me dum impulso só, a mão lançada ao varão, o desiquilíbrio dum segundo, a mão dele balançada ao nível do meu joelho, ou um pouco acima, a minha anca, nem quero pensar onde, isso gostava eu de saber. Foi mais suave que todos os beijos que vou dar mentalmente no seu rosto, é o que penso, é o que me alivia, e saio devagar. O autocarro segue, custa a crer que todos sigam com ele, todas as caras de que me lembro agora nitidamente, os cheiros, as vozes abafadas, o gosto seco na boca. A notícia, já sei, veio-me assim de repente, parece que está a chegar ao país uma vaga de calor.
Sem comentários:
Enviar um comentário