29 de abril de 2016

A gaveta escondida #8: “A FORMA SOLTA”

Com muita pena, tenho de confessar que este foi mais um dos contos rabiscados durante as interessantíssimas aulas de História da Língua do 4º ano da faculdade (cf. “A gaveta escondida #1”), disciplina que, como terão percebido, me marcou muitíssimo, talvez não pelas razões esperadas. Um conto com muito “eu”, muita casuística, muito tecnoleto da linguística (alguma coisa ia entrando, suponho, à medida que a aula progredia), mas algumas frases que me enchem as medidas: “Houve um tempo em que me atraíram as filosofias, a vocação irracional para o absoluto. Contemplativa no meu rosto concentrado, absorvia-me toda na questão redonda da verdade. Contingências várias confrontaram-me então com as histórias, e aprendi no constrangimento de cada momento que as verdades mudam sempre que muda o rosto sobre elas.” Não está mal.

A FORMA SOLTA

Vario tanto o meu penteado e a cor dos meus cabelos, que já não me lembro se nasci com eles lisos ou ondulados, louros ou castanhos. O meu roupeiro é uma balbúrdia inusitada de sedas fluidas, bordados densos, lãs mornas, impermeáveis gelados, e a minha mão, ao escolher de entre eles, hesita ante esboçar um movimento gracioso de ballet ou atrever-se com um reflexo concentrado e firme de atleta. As minhas gavetas são uma desordem de escovas, lenços, pulseiras, perfumes – uns, que desde sempre utilizei, outros, que nunca me pertenceram. Acontece-me entrar irresistivelmente num loja, para comprar algo de que não tenciono fazer uso a curto prazo, algo que nem me agrada de momento, mas que impele a ser guardado para a ocasião. As estantes transbordam-me em caixotes pelo soalho, e, nas suas prateleiras, o mesmo pó e o contacto forçado aproximam em súbita empatia Gautier e Baudelaire, Nietzche e Platão. Quando é preciso – é muitas vezes preciso –, o meu olhar turvo selecciona com eficiência e rapidez a leitura ou a aparência requeridas pela estratégia do momento. Movo-me em conforto no meu lugar absurdo, desorganizado, a que deve assistir contudo um qualquer tipo de arrumação mental, que é concerteza eu mesma. O meu camarim e a minha consciência são espaços livres onde só eu me faço convidada, onde permaneço muito pouco, mas sempre inteira e satisfeita.
Sou uma presença feminina e requisitada. Os meus álbuns dão conta dos itinerários sociais e humanos que eu me tenho feito percorrer. Poetas e banqueiros, ociosos e marginais, repousam lado a lado, numa solidariedade contrafeita, sobre páginas escuras de cartão, sem precisarem da luz de legendas. Eu colo fotografias a par e passo, com uma ternura irónica e um empenhamento sabedor, e os meus olhos irrisam-se perante as diversas imagens e cores por que passeiam, sorridentes, pensativos. As vias divergentes do meu conhecimento são uma exigência do curso de vida que para mim planeei. Houve um tempo em que me atraíram as filosofias, a vocação irracional para o absoluto. Contemplativa no meu rosto concentrado, absorvia-me toda na questão redonda da verdade. Contingências várias confrontaram-me então com as histórias, e aprendi no constrangimento de cada momento que as verdades mudam sempre que muda o rosto sobre elas. Empenhei-me, pois, na verdade de mim mesma.
A verdade para dentro ou a verdade para fora? Se a mentira for num homem por carácter mentiroso, a que corresponde senão à sua verdade interna? Semear ilusões pelo exterior pode ser uma consolação piedosa. Eu sei que mentir sempre foi para mim dar a cada outro a verdade única que ele aceita e merece. Isto faz de mim uma mentirosa natural, com tudo o que uma natureza exige, claro, de construída opção. E a minha vocação para o amor é tão grande que sou a única a dar exactamente a cada um o que ele espera de mim, e assim rio ou choro, falo ou ouço, numa volubilidade apaixonante que faz as delícias dos meus admiradores. A minha fama é tão firme, o meu sucesso tão completo, que circulam por vezes boatos exagerados a meu respeito. Alguém garantia há uns meses atrás que eu… Lembro-me que na altura sorri, não descontente com a calúnia. A calúnia é a mais grave das mentiras. Agradou-me que, por uma vez, fosse o outro, ainda que num acto involuntário, a ir ao encontro da minha natureza. Que houvesse uma anónima alma gémea da minha foi, mais do que se possa pensar, um considerável conforto metafísico. São pequenas compensações como essa, e não apenas a minha conta bancária, que me fazem, afinal, perseverar na falsidade…
E veja-se como eu sou tolerante. Não me importo que, de longe a longe, alguns se apercebam do estudado dos meus gestos, do limado das minhas palavras, do cinzelado dos meus olhares… É raro, e só mesmo seres extraordinariamente atentos me conseguem detectar essas falhas. Há um jovem poeta que desvelou a minha atitude e, desconcertado, critica uma prática que chama de hipócrita e perigosa. Tenho tentado mostrar-lhe em vão que a mentira só existe em mim, e não na verdade de cada um dos com quem me relaciono. (Ele é a primeira pessoa com quem discuto a minha mentira verdadeira e está definitivamente assustado.) Se alguém escutar mais do que as estritas palavras que lhe endereço e se tentar determinar-me, achará facilmente a mentira. Mas não é suposto ninguém tocar nela, descodificá-la, semantizá-la, convocá-la a si, aos seus sentimentos, aos seus raciocínios. Quando ele me acusa com insistência de ser vã, desonesta, abusadora, apetece-me mostrar-lhe que ninguém lê de mim o que eu sou, mas só o que está a enformar-me. Há uma fatalidade incontornável. A comunicação entre os seres é descontínua. Há folgas inevitáveis entre as almas, sinapses mentais inestreitáveis. Viver, digo eu, é saltar das oclusões mais castradoras às fricções mais inseguras, passando sempre ao lado da coroa da vida.
O meu choro agora não me aborrece nem me contraria, porque é a minha verdade do momento. Mas como missionária inconstante, enfermeira flexível votada aos espíritos, eu devo esquecer-me dele, não ficar presa à verdade risível do momento, mas conformar-me à verdade total do meu ser. E esta obriga-me a querer parecer bem ao meu pobre poeta, isto é, distante e insensível… como ele espera. É inútil e cínico qualquer esforço de sinceridade. Devo redimir a mentira, que é a minha verdade, ajustando-me à verdade dos outros. Devo proclamar a verdade, que é a minha mentira, asfixiando-a e submetendo-a à mentira que ele aguarda de mim. A diferença de critérios, no tratamento dele e dos outros, não me estorva, senão no que pode insinuar de sintoma de fraqueza: é impossível, ao mesmo tempo, guardar fidelidade a leis diversas…
Felizmente a minha habilidade distrai-me da melancolia, e insensivelmente encontro, num monte desconjuntado, o par conveniente de sapatos. Por reflexo, assumo ao calçá-los o discreto andar certo, a respiração silenciada, o ricto suavizado. Percorro o curto espaço até à minha porta, desviando-me imperceptivelmente dos leitos de roupa e dos caudais de livros alastrados pelo chão, e aí chego, incólume no meu disfarce do momento. Gesto livre e preciso, o de fechar à chave a entrada do meu mundo. E só de repente me envergonha pensar que não posso levar ao seu encontro a verdade maior e perturbante que é amá-lo.

26 de abril de 2016

A gaveta escondida #7: "JOANA E O ANJO"

O ciclo dos contos que me lembro de ter escrito antes de 1996 (ano que representa, não sei bem por quê, uma espécie de viragem) encerra-se com “Joana e o Anjo”. Outros contos como “A melodia de Orfeu” viriam numa segunda fase de escrita, mais amadurecida (?!), a que poderei vir a chamar, quem sabe, “A gaveta do meio”.
“Joana e o Anjo” foi sempre uma espécie de emblema. Corresponderá ao meu pacto com o Anjo (ou o Diabo?); o momento em que senti que viesse o que viesse, lutos, doenças, fracassos, desilusões, conseguiria sempre aguentar-me… graças à escrita. Não caiam na tentação de me verem na Joana (tenho algo de Catarina, bastante de Francisco e qualquer coisa do Anjo-Diabo). Mas, ao contrário do que sugere o narrador, não vos impeço de lerem esta história como uma parábola…

JOANA E O ANJO

No momento em que Joana atravessou a porta do café e se sentou à mesa do canto, instalando-se para sempre na minha vida, ainda ninguém sabia o que se ia passar. Nem ela, com os olhos e os livros pousados desencantadamente em cima do tampo embaciado, nem eu, disfarçado de homem comum a beber uma cerveja, nem a força superior que nos comanda não sei como.
Antes de começar a contar a história de Joana, devo dizer que esta não é uma história sobre a escrita, nem sobre os escritores, mas só sobre Joana. Joana, a rapariguinha de olhos negros e cabelos lisos sentada ali ao canto, menos rapariguinha na idade do que no aspecto frágil, mas enorme na sua presença e na sua beleza, sem o saber. Joana conquistou o direito a este encontro por não o ter esperado, por não o ter desejado, por não ter feito nada para que ele acontecesse, a não ser escrever e existir. Dolorosamente. Joana escrevia vivendo e vivia escrevendo, passe o lugar comum, sem por isso pretender parecer-se com nenhum dos escritores geniais, incompletos, inseguros, que tinha estudado ao longo de anos na escola e agora moravam nas suas estantes.
Joana escrevia contos, que eram no fundo histórias pequenas, histórias que não aborreciam, histórias de quem não quer incomodar. Contos perfeitos, seguros, claros, quase sempre tristes, ideais como a beleza que ela perseguia, uma beleza discreta e firme, que mal se visse mas se soubesse que estava lá. Mas, durante muito tempo, as histórias de Joana não foram um fim, mas simplesmente um meio, um modo de enfrentar os dias que se sucediam, e tudo o que nos dias se sucedia, sempre igual, e ao mesmo tempo um modo de corrigir o que nela era diferente dos outros e de perseguir o que era normal.
Quando Joana terminava um conto, quando acabava de escrever algo de bom, era como se alguém lhe desse um beijo por dentro, um beijo que a reconhecesse e a recompensasse toda. E quando alguém casualmente, porque Joana evitava mostrar o que escrevia a alguém, apreciava os seus contos e revelava admiração, Joana por momentos confundia essa emoção despertada nos outros com esse conhecimento grande que só ela mesma tinha da grandeza do seu sofrimento e sentia-se feliz por não estar sozinha. Mas em breve a ilusão se desfazia, à medida que os outros tentavam comentar as linhas que liam e ela ia vendo o quanto se afastavam dela e uma nova camada de tristeza cobria os seus olhos escuros.
E não se espantem se chamo de sofrimento o trabalho de escrita de Joana, porque de sofrimento se tratava, de ferida e de dor. Joana sabia dessas linhas arrancadas a choro ou arrancadas ao choro, linhas que lhe escorriam da mão esguia com um estranho misto de força e suavidade, como costumam escorrer, fortes e suaves, os cabelos lisos das mulheres bonitas, e se estendiam sobre o papel áspero, como corpos delicados sobre a areia da praia. Tantas páginas a tinham salvado de tantos desgostos, de tantas provações... Do suicídio não, porque Joana tinha medo do suicídio, não da irreversibilidade da morte, mas da irreversibilidade do gesto em si. Teria pensado em suicidar-se, algumas vezes, porque suicidar-se seria bem mais fácil do que procurar a redenção no caderno e no lápis, estaria à distância da janela mais próxima ou da rua apinhada de carros, e buscar a salvação na escrita custava bem mais, de esforço, coragem, virtude. Ter-se-ia suicidado, se fosse possível prever a posição do seu cadáver, a expressão do seu rosto. Não as podendo prever, nem calcular, nem preparar, receava antes de mais o ridículo, os olhares incómodos, os comentários distorcidos, a incompreensão.
Através dos seus contos, Joana apropriava-se da beleza, da riqueza e do amor. Todos os gestos claros e doces de todas as mulheres belas, ricas e amadas percorriam e sublimavam o seu corpo, transportado à grandeza do impossível. Todas as emoções boas e sãs de todos os vencedores desta vida lhe entravam e saíam pelos poros à mistura com o suor. Era tão intenso o prazer quando a personagem amava, que Joana tinha de morder os lábios para não gritar ou não desatar a partir coisas... Era tão forte o orgulho quando o herói vencia que Joana prendia as próprias mãos à mesa para não saltar...
De uma forma ou de outra, ia celebrando todos os de quem gostava, assassinando sucessivamente todos os que lhe faziam mal. Apareciam com um nome falso, a aparência mudada, às vezes reuniam-se dois ou três numa personagem só, mas Joana não se perdia e sabia com quem contava. Acabavam sempre por se afundar nas linhas que desfiava, numa rede estreita e interminável, agonizavam perdidamente no remate de cada história, sob o veneno, a facada, a ferida secreta, a doença sem cura.
Foi assim que Joana conquistou uma eterna expressão de candura, de desprendimento das pequenas iras quotidianas, de alheamento das coisas que normalmente vos preenchem a vida, que alguns, como a sua mãe, confundiam com a indiferença, e outros, como a sua irmã, com a tranquilidade. Só Joana sabia que, por detrás da sua força serena, habitava uma sensação morna de sono e de desilusão. Essa sensação frequente de que já correra todos os caminhos suavizava-lhe o rosto sério, mas menos por obra da coragem do que duma inteligente resignação. Acontecia Catarina reparar nela nessas alturas. Encontrava-a à varanda, encostada ao peitoril largo, a mão pousada sob o queixo, o olhar que só a quem não a conhecesse pareceria perdido ao longe, mas realmente afundado, abandonado por dentro, submerso por um estranho brilho de luz, uma luz estranha que parecia roubada, roubada às cores de fora, às arestas das casas, aos olhos dos outros, à chuva e ao calor. Joana era realmente bela nessas alturas, mas não sabia, porque a sua consciência andava longe, ainda que andasse por dentro de si mesma, e mais ninguém sabia, porque ninguém estava lá. Só nos olhos de Catarina Joana conseguia às vezes surpreender a imagem da sua beleza, e embevecer-se com ela, e encher-se de esperança, e amar muito a sua irmã, mas o encanto durava alguns segundos, e depois Joana percebia que o que via no olhar da irmã era mentira, uma mentira bonita, mas mentira, como as mentiras daqueles que liam o que ela escrevia, e então perdia quase tudo, a alegria, a comoção, a esperança, só sobrava o amor real, terno, doce e superior a tudo, que sentia pela sua linda, frágil e meiga irmã. Joana desconhecia a inveja e o ciúme, porque a inveja e o ciúme pressupõem o desejo de ter para si o que se vê ser possuído pelos outros. Joana sabia que a sua felicidade não estava nas mãos de ninguém porque não existia, ou ainda não existia, e se viesse a existir não dependeria de ninguém, nem sequer dela, só de um milagre de Deus.
Uma das coisas que entristeciam Joana era a forma visível como o seu rosto facilmente se cansava. Sem que Joana fosse cardíaca, ou hipertensa, ou asmática, ou sofresse de qualquer outra doença, o certo é que uma tarde de calor, uma hora de marcha, uma viagem de autocarro, bastavam para lhe embaciar o olhar, lhe empoeirar a expressão e lhe carregar os traços. No fim de um dia de aulas e de afazeres, quando, por exemplo, chovia, e a pasta, o guarda-chuva, a roupa grossa, os membros exaustos, tudo pesava e incomodava, Joana conhecia por instantes uma rara revolta e apetecia-lhe gritar.
No entanto, Joana suportaria facilmente aquilo que considerava uma quase fealdade e uma ausência de graciosidade, se não fosse a solidão. Joana vivia com pai, mãe, irmã, tinha primos, vizinhos, colegas e até amigos, mas sofria de uma irremediável solidão. Joana não era um bicho do mato, como vocês costumam dizer, sabia sorrir numa festa, ser educada com as pessoas de idade, acarinhar as crianças, dizer piadas aos rapazes. Mas era como se os sorrisos e as vozes e os gestos ao desprenderem-se dela levassem sempre consigo um pedaço da sua solidão, o que os tornava deslocados, falsos, obsoletos, contaminados por aquilo que Joana achava ser uma doença triste e era afinal uma grande força interior.
Mas Joana não se rendia e perguntava. Onde está a felicidade, onde está a minha felicidade, perguntava-se muitas vezes Joana. Dir-me-ão que este é o género de perguntas que fazemos a nós mesmos, quando somos jovens ou estamos no fim da vida, quando passamos os dias a olhar para os lados, a procurar nos rostos que se cruzam com o nosso na rua uma resposta, um gesto, uma solução, ou quando começamos a olhar para trás, e percebemos que os gestos e as respostas estavam lá e não as vimos. Joana perguntava-se se iria acabar assim, encolhida sobre as suas memórias, a pensar que a solução tinha ficado ali. Quem sabe se aquelas calças gastas, em que ela então não gostava de se ver, quem sabe se a contemplação futura dos restos ou a simples lembrança das suas calças gastas, que a apertavam, a incomodavam, a faziam gorda, não iriam mais tarde fazê-la chorar de lembrança. Quem sabe se não sentiria saudade do seu rosto carregado, sisudo, cansado, sempre fechado aos outros, sempre tão pouco bonito. Ou quem sabe se a felicidade não estaria nos contos que escrevia, nessas páginas amargas que a salvavam.
Um dia, Joana conheceu Francisco, que era um rapaz amável, inteligente e um pouco sedutor. Não sei se Francisco vislumbrou em Joana aquilo que estava para além da aparência, a imensa beleza, a imensa força, talvez até, possivelmente, a solidão. Não sou eu quem tem o dom da omnisciência. Sei que Joana nunca vislumbrou nele a sua felicidade ou a sua salvação. Sabia que aquele rapaz estava casualmente apaixonado pelos seus olhos verdes, ou pelo seu sorriso, ou pelas suas mãos, ou por qualquer outra coisa que viera à superfície, mas que Joana sabia não ser a verdade sobre si mesma. Mas enquanto Joana esteve ao lado de Francisco tiveram uma vez uma conversa, não essencial para esta história, mas que eu gostaria de contar.
- Quando eu nasci, o meu nome esteve para ser outro, porque a madrinha devia ser uma amiga da minha mãe, que se chamava Isabel. Mas morreu de repente, num acidente, e ninguém me quis dar o nome, acho que por causa do mau agouro.
- Isabel. Também gosto. Ias ter nome de rainha santa.
- Assim, tenho nome de princesa santa.
E Joana resumiu a história da bela princesa portuguesa, filha do rei D. Afonso V, que quisera seguir a vida religiosa, impelida por um grande amor a Deus, mas vira a vocação contrariada pelo dever de estado, e contou como ela vivera sempre aquém dos seus desejos, impedida de professar, mas recusando todos os pretendentes, multiplicando-se em obras de caridade, mas incapaz de realizar a obra que tivera sempre em mente.
Se me lembrei de transcrever esta curta conversa, entre tantas outras que Joana teve com Francisco, foi só porque sei que Joana atribuía à mudança atribulada do seu nome o significado de uma falsa partida, daquelas que enervam o atleta e condicionam a sua prestação na prova. Joana achava que tinham acabado por lhe dar um nome meigo, de princesa beata, como que para compensar esta primeira orfandade, a morte da madrinha que não chegou a ser, e sublimar a sua falta de graça, que, logo em recém-nascida, Joana achava que devia ter sido visível. Como se houvesse sublimação possível...
Pouco depois, Joana e Francisco separaram-se. Joana não sofreu muito, sabia que o seu caminho não era aquele, o seu caminho não existia, pelo menos fora de si. Foi então que marquei encontro com Joana, por acharmos todos que tinha chegado a hora. O nosso encontro foi num daqueles dias em que se conta com o inexplicável, em que alguma coisa no ar, nos ruídos da rua, nos gestos dos transeuntes, nos parece avisar que a qualquer momento a chuva pode vir estragar o belo dia de verão ou o calor render subitamente a tempestade. A primeira pergunta que Joana me fez, assim que me aproximei dela, quase me fez sorrir.
- És o diabo?
- Bem sabes quem eu sou. As maiores tentações nesta vida vêm-nos de Deus.
- Que queres de mim?
- Sou o anjo da guarda que a tua escrita engendrou. Venho mostrar-te o que podes ter. Podes ter tudo. Podes ser tudo. Não podes ser igual aos outros. O caminho que te vou mostrar é o mais real de todos. Com as Catarinas e os Franciscos deste mundo podes conhecer muitas felicidades, muitos desgostos. Eles são reais como a chuva, completos como o calor. Comigo podes conhecer a felicidade e o desgosto supremos, a extrema crueldade de existir. Não podes andar para aí a escolher o fim das histórias que escreves, à espera que venham remediar o que está mal. Não podes esperar que cada fim seja um remate e aumente a segurança com que caminhas sobre o chão. Saberás ver para além das sombras, das arestas das coisas, e verás o que muito pouca gente vê. Saberás que a cor vermelha do casaco daquela senhora irá desbotar com o tempo, que aquele par de namorados ao canto se irá separar amanhã. Com o que sabes podes fazer tudo, tingir o casaco dela da cor dos sonhos deles, emprestar aos beijos dos dois o vermelho da paixão. Mas não podes esperar que as cores e os sonhos permaneçam, porque tudo é instável no mundo da criação. O caminho que te mostro é o caminho da criação. Nem sempre se pode criar o que se deseja. Mas o que se cria ultrapassa tudo…
Talvez a história de Joana não tenha acabado como gostariam, ou talvez achem que não acabou. Poucos de vocês ainda aceitam a realidade das coisas, que muitas vezes vos parece fluida e irreal. Mas esta é a história de Joana, e eu não vos prometera outra coisa. Não vos vou dizer quantos anos ela tem agora, nem se está casada, com filhos, solteira ou viúva, se é uma escritora famosa ou uma filósofa recolhida. As histórias simples são as das pessoas simples, como Catarina e Francisco, que, esses sim, casaram - um com o outro. As respostas que vão surgindo levantam sempre mais questões. Talvez por isso os poetas escrevam tanto, à procura quase nunca das respostas definitivas, mas do anjo da guarda que eles não têm a certeza de poder vir a ter, porque eu disse-vos que esta história não é uma parábola.

19 de abril de 2016

A gaveta escondida #6: “O PRIMEIRO DIA A SÉRIO DE CALOR”

Escrito mentalmente no saudoso ano de 1994, entre quotidianas idas e vindas de autocarro entre Gaia e Porto, seguidas de idas e vindas de comboio (sim, na altura era comboio) entre Porto e Castêlo da Maia, e posteriormente transcrito na velha máquina de escrever do meu pai, “O primeiro dia a sério de calor” ficciona um acontecimento banal. Pontos nevrálgicos? Talvez um certo despudor da narradora protagonista e uma certa cedência do sentido à musicalidade, que eu aprenderia a controlar mais tarde e a usar a meu favor (acho...). Aqui vai, sem timidez nem mais comentários.

O PRIMEIRO DIA A SÉRIO DE CALOR

O ar está carregado, nota-se quando se respira, carregado com os próprios pensamentos, com o peso das sensações. O peito aquece por dentro, a chuva não veio aliviar os corpos, há uma espécie de desmaio depois de cada inspiração. O dia acaba tarde para quem entra neste autocarro, o autocarro lento da última hora de ponta, sujo e arrastado, como um bicho a morrer de calor.
Aqui sentada, arrumada, comprimida pela coxa forte da mulher ao lado, sei que estou no meu melhor. Arrumada, espremida, esmagada, sei que estou no meu melhor. O cansaço fica bem com o meu rosto de feições marcadas e olhar grande, que dá até onde eu quiser. O suor leve que me escorre da raiz dos cabelos aumenta o meu encanto estranho, que hoje eu sinto à flor dos poros, como uma doce irritação. Com este rosto, com estes olhos, com este suor, hoje, nem sei como me sinto, mas posso ser quem quiser.
A visão surge, como uma imagem subitamente definida, coada pela sonolência, tremida pelo cansaço, torcida apesar de tudo como mais uma gota de transpiração. Abrem-se-me os olhos por dentro dos olhos, e à minha frente encontro o Mick Jagger, em versão revista e melhorada, os olhos castanhos claros, possivelmente verdes, aqui dentro sem sol, como é que a gente há-de saber. O nariz perfeito, os lábios perfeitos, imensos, cabiam perfeitamente os meus por cima, e ainda sobrava muito espaço macio. Os cabelos ondulados, ásperos, um pouco crescidos, o perfil quase colado ao vidro, o que será que procura, os olhos em ponto de mira, no meio do calor. O corpo todo grande e maciço, mas gordo de modo nenhum, e magro nem pensar, e mesmo assim a dar a impressão de que ainda vai crescer. Meu Deus, como é que a gente há-de explicar isto, ou pior, como é que a gente há-de resistir.
Acho que o aborreci um pouco, ao sentar-me à frente dele, obriguei-o a recolher as pernas grandes, que tinha estendido, quase arrumado, por cima do meu lugar. Há-de ter pensado, porra, tantos lugares vazios, e a gaja vem sentar-se mesmo aqui. Há-de ter-se dobrado, contrafeito, desdenhoso, com o jeito calmo das pequenas contrariedades.
Ao meu lado direito há a tal mulher com buço e pêlos nas pernas há muito esquecidos, eu sei que é indecente estar a olhar e a pensar estas coisas, mas não faço por mal, talvez a mulher nem dê por mim, coitada, tem um ar cansado, de coisa enxovalhada, o que ela não deve ter que fazer ainda antes de poder ir dormir. Costumo achar deprimente isto tudo, os rostos cansados ou irritados, ou as duas coisas, os corpos pesados, corcundas, carregados, sacas de compras, sacos de viagem, casacos que talvez sejam precisos de manhã cedo e depois só servem para atrapalhar. Costumo distrair-me mesmo assim, escolho uma cara à sorte, macho ou fêmea pouco importa, o que quero é um rosto mais ou menos desconhecido, para observar, dissecar, e depois diluir. Estudar-lhe as rugas, as manchas, as expressões, as cicatrizes, os cabelos caídos sobre a gola, os sinais de beleza e aqueles que não são. Adivinhar-lhe a vida, a rotina, o trabalho, a roupa com que anda em casa, as desgraças, as paixões. Pensar no que pensa, no que faz, se rói as unhas, se bebe um pouco mais do que convém, se se enerva com a sogra ou com os filhos, se sente a falta de... Pensar se é feliz, se mais ou menos como todos dizemos que somos, se se sente bem consigo mesmo ou se nem sequer sabe o que é pensar nisso. Mas ele não me veio à imagem como nenhum desses, não o procurei, não me esforcei, sentei-me em frente dele e ele estava ali.
Ao fundo, no banco de trás, tu, o outro, fitas-me com insistência, entre o empenho e o deslumbramento. Não sei como te hei-de descrever. És tão banal que quase te tornas querido. Tens os olhos castanhos, os cabelos castanhos, lisos e curtos, como deve ser. Não gosto muito da cor da tua pele, baça, amarelecida, oxalá seja só desta luz de dentro, ou pelo menos da falta de apanhar sol. Tens a boca fina, larga, um pouco esguia, só isso me agrada em ti, é capaz de ser bonito, andar à procura das expressões dela, perseguir um beijo teu.
Mas tenho as minhas pernas entre as pernas dele, a minha perna esquerda encostada à perna direita dele. Não tenho culpa, não fiz de propósito, se pequei não foi por maldade, foi só por omissão, por preguiça, por falta de força, eu sei lá, o abandono do calor. Parece-me a única vez que andei de canoa, devia ter a idade dele, foi no Verão, num campo de férias, agora as pernas dele fazem-me lembrar a canoa estreita em que andei. Seria mesmo difícil eu não estar assim. Espero mesmo que não se importe, a minha perna fina e musculada, a minha pele suada dos collants, encostada à sua perna áspera e quente dos jeans.
Há uma altura em que os nossos dedos quase se tocam, é inevitável, perigoso, estamos ambos a desentorpecer as mãos. Vejo-o no reflexo empoeirado do vidro, que dedos compridos que ele tem, e parecem macios como os de um menino, mas sujos não sei de quê, espero que seja só a poeira, não quero nem pensar em cimento, não posso acreditar que um rapaz tão lindo venha a acabar trolha, a usar mochilas de ganga desbotada e uma tatuagem mal feita no braço. E no entanto deve ser mais ou menos isso o que o espera, quem se mete em autocarros destes mora em lugares chamados Cabeços, Candal, Rego do Cão. Não sei o que faço aqui no meio, nem sei porque me sinto tão bem, eu devia era ter carro, ou apanhar uma boleia, não pertenço a este ambiente, definitivamente hoje não me sinto ninguém. Agora só alguns milímetros nos separam, o trânsito é que não anda, nada treme, ninguém respira, o autocarro está parado, senão é bem provável, digo eu, ou então deliro, que ele acabasse por me pegar na mão. Acho que ele também reparou, porque me olha de repente, e me olha com o rosto todo, daquelas coisas que duram segundos, mas que se sentem no fundo, afinal ele não via só através do vidro, soube ver o que havia nele, e havia a minha imagem, a minha sombra, havia eu.
Começou finalmente o jogo, os olhares misturados, os olhos nos olhos, como se costuma dizer, aquele jogo de espelhos repetido e misterioso, em que ficamos entre as pestanas do outro, em que de tanto nos vermos fora de nós, corremos o risco de nos perder. Agora é como se os olhos dele fossem o meu norte, de repente mais doces e mais fortes, mais límpidos que toda a poeira e o mau cheiro, mais duros que os corpos amolecidos pelo calor, não me consigo desprender. Assuntos complexos estes, dos olhos, dos gestos, das durezas, dos significados, o meu Mick afinal é um menino forte e doce, e eu acho que ele sorriu para mim.
Só tu ao fundo interferes, como um ruído tosco, os olhos atirados para cima do meu corpo. Tenho a impressão de que já me conheces bem, de que já me viste muitas vezes antes, talvez doutras viagens de autocarro, ou pelo menos das filas da paragem. Talvez já tenhas reparado em mim sem eu ter reparado em ti. É provável, que os teus olhos dizem qualquer coisa, parecem pedir qualquer coisa, têm uma expressão ligeiramente severa ou magoada, como se sentissem ter direito a qualquer coisa que eu lhes negasse. Não me lembro, desculpa, não me lembro, afinal a vida é mesmo justa, os tais caminhos tortos e insondáveis, afinal todos temos direito a semear paixões nos outros, paixões distraídas e insolentes. Pensei que era só eu a sofrer sempre, a pensar em quem não pensa em mim, e afinal agora encontro este rapaz, que está farto de me ver, de me desejar, não tenho provas disto, claro, mas há quem diga que só se cobiça aquilo que se vê todos os dias, e é o que me quer parecer. Talvez haja mais como tu, talvez mesmo aqueles em quem eu penso. Não sei se isso me consola, tenho o pensamento adormecido, é como se todos me entrassem de repente pela cabeça adentro, e eu nem sentisse nada, por onde é que andará o meu amor. E no entanto olhar para ti põe-me triste, porque tu estás triste, e eu não seria capaz de jogar contigo aos olhares. Se estivesses mais perto, talvez até me visse nos teus olhos, mas era diferente, o cabelo, o peito, a boca, tudo, mas as minhas pernas entre as pernas do outro.
Tenho de me levantar, o autocarro vai seguir sem mim, quem se irá sentar no meu lugar, quase que sou eu a decidir, vai ser aquela senhora meio obesa, que atrapalha a passagem no corredor. Há um velhote ao canto a ler o jornal, o título grande diz-me qualquer coisa, deve ser pelas cores fortes, mas não consigo descobrir o quê e já não posso confirmar, o leitor dobrou a página, tem bigodes fartos e um boné coçado. A memória é assim, aquela que chamam de provisória, frágil como um fio de cabelo, qualquer sopro a pode espantar.
Como é que a gente se despede duma pessoa que não conhece, alguém que nunca se teve, que nunca se vai ter. Que disparate, os autocarros são mais fiéis que muita gente, havemos de nos encontrar mais vezes, quem sabe numa tarde como esta, de nuvens e de calor. O melhor é fazer de conta que não me vou embora, tenho vergonha de lhe lançar um olhar de despedida, não vai haver nenhuma despedida, só um até logo, amor. Vou segurar com firmeza a minha pasta, gesto simples e claro de aviso, quase sinto a pergunta dos seus olhos a pairar-me sobre a palma da mão. Vou ajustar no ombro a alça da carteira, e agora também tu já sabes que vou sair, para ti olho, não sei por quê, tenho medo de esquecer a tua cara, parece-me que tens o mesmo medo, também. Não desesperes, miúdo, o mundo é mesmo assim, dos mais fortes, dos mais bonitos, não há nada a fazer. Não fiques triste, isso passa já, um dia vais conhecer uma boa rapariga, uma mulher de coração melhor vai gostar de ti, pareces fiel, tens cara de homem fiel, há quem aprecie, eu própria aprecio, às vezes, talvez quando está menos calor. Que disparate, que conversa a minha, como se tu não soubesses, a questão não é essa, é o silêncio, é a ausência, ninguém suporta uma recusa, nem que venha não se sabe de onde, meu Deus, leva-me embora, quero desaparecer.
Qual a impressão que deixo, ao levantar-me dum impulso só, a mão lançada ao varão, o desiquilíbrio dum segundo, a mão dele balançada ao nível do meu joelho, ou um pouco acima, a minha anca, nem quero pensar onde, isso gostava eu de saber. Foi mais suave que todos os beijos que vou dar mentalmente no seu rosto, é o que penso, é o que me alivia, e saio devagar. O autocarro segue, custa a crer que todos sigam com ele, todas as caras de que me lembro agora nitidamente, os cheiros, as vozes abafadas, o gosto seco na boca. A notícia, já sei, veio-me assim de repente, parece que está a chegar ao país uma vaga de calor.

18 de abril de 2016

A gaveta escondida #5: "A PRAGA"

Aos dezasseis anos, as leituras abundantes de livros policiais e fantásticos, juntamente com o visionamento precoce de filmes de terror (obrigada, Pai!), começam a dar os seus frutos e, paulatinamente, o estranho entra nos meus textos. Aqui vai o conto “A praga”, revelando todas as marcas da imaturidade na alegoria um tanto repetitiva, no exagero de adjetivos e numa ou noutra sintaxe duvidosa. Mas enfim; nem tudo seria mau. Um ano e meio depois concorri com ele a uns Jogos Florais e arrecadei uma inesperada Menção Honrosa. Não me lembro se ganhei uns cobres, acho que não; mas fiquei convencidíssima de que um dia seria escritora… Uma foto da época, com os "manos" Pedro e Miguel.

A PRAGA

Ao fundo da sala, debaixo das três janelas, podres nos caixilhos e empoeiradas nas vidraças, fica o antigo contador entalhado. Destaca-se da uniformidade suja, da semi-obscuridade provocada e obsessiva, apenas pelo ar polido, que consegue prevalecer às rugosidades da madeira, às falhas dos incrustados. Parece, no meio de catacumbas, uma ara arruinada e sagrada. A ele se dirige um homem, de quem não se põe em dúvida, apesar de curvado, a altura. Ela devia outrora ter sido imponente, devia ter concedido ao seu possuidor uma aparência de titã. Agora só lhe aumenta o declínio, como acontece com certas árvores velhas de que, reparando na ogiva tombante dos ramos, se comenta a decrepitude. Mas este velho não é decrépito: grassa-lhe pelas feições rudes uma erva rala, branca, incerta, mas conserva nas pupilas curtas um laivo de astúcia morna. É, pois, árvore que morre aos poucos, sugada pelos fungos que a cobrem, ponteada de pequenas setas de sol.
Chega ao móvel a passos grandes e soldados de gigante encapuzado, só que o capuz é da relíquia duma samarra ocre, de aldeão. Quase roçando, a barriga empina-se-lhe expectante e as órbitas, de perfil, iludem crescer também: pelo rosto do velho, assim em frente do móvel-ara, vai uma ânsia, um pasmo, uma reverência de sacerdote. As suas extremidades peludas, estendidas ao tampo do altar de carvalho, são bem membros de presbítero, transfiguram-se de disformidade em sublime por obra do zelo. Nas paredes trabalhadas do contador salientam-se agora as arestas das gavetas – ao todo, uma dúzia de sacrários, oferecendo-se simples ao tacto do velho-padre. Ele escolhe, com requintes de apaixonado, mais minúcia de sábio, porque os gestos transbordam de decisão, de ciência, de noção. Está já aberta a do meio, dentro não há escrínias de veludo debruadas a ouro; cheira a azedo e o forro é de papel manteiga, finíssimo, roído. O cálice da oblação é um largo frasco de vidro, espesso e sujo. Não tem tampa, a boca foi abafada por uma rodela de plástico, ajustada com borracha. Dentro rodopia um turbilhão, mais vivo e enérgico que um espírito; as sombras minúsculas e dinâmicas de que é composto mimam, pelso volteios rapidíssimos, uma só essência poderosa. A verdade é que são moscas, dezenas, centenas de moscas, melgas, varejas num só frasco, e em cada uma das gavetas há mais frascos assim cheios.
O espólio cresce sobre a tampa do contador, disposto em filas pelas mãos hábeis do velho. Não resta espaço, algumas patenas ficam por ora guardadas, ciosamente, no respectivo sacrário. O velho desprende do bolso um cartucho húmido e uma colher de alumínio, pousa-os na borda do móvel. Vai pegando em cada frasco com ares de criador, de artista, e o seu olhar é de cálculo comovido. A dose certa só é fornecida (desobstruído o único canal) após exame meditado, para que a cada insecto caiba o que lhe compete. O homem sussurra uma gargalhada, salivosa e rouca, não só de velhice, de catarro, também de emoção e orgulho.
Uma súbita serenidade se apoderou do sacerdote, dos membros distendidos, de que agora quase poderiam pender teias de aranha. Reflecte com ar habituado, mas mais grave, porque de momento especial. Chegou o momento? Há muito, há sempre que o velho colecciona com fervor as suas moscas. Em criança, caçá-las na armadilha articulada das falanges e esborrachá-las sob um godo achatado era a iniciação imberbe e torpe à suprema afeição. O amor veio aos poucos, seguindo-se à admiração, ao devaneio, ao cuidado. Tratou de especializar a técnica, exacerbar a diligência: já não as enclausurava na mão, colhia-as como lepidópteros, só que em sacos de plástico, e deles as levava aos frascos. Viveiros transparentes e furibundos, de fundo arenoso, onde o açúcar e a mica se entranhavam. Conservados, aumentados numa vida em que foram mais que simples ocupação – um fito sagrado. Nem mulher, nem filhos, nem trabalho, distraíram o velho das cruciais obrigações do sacerdócio: banir os insectos mortos ou doentes para que os novos e bons prosperassem, penitenciar os desassossegados amputando-lhes a asa ou a pata, repartir as castas por recipientes diversos, distribuir o açúcar que só os melhores sabiam procurar. Assim se formou uma tribo, um povo eleito unido em reacção vertiginosa como um preparado de sódio.
Contemplativo, o homem solitário espia o seu tesouro. Rejuvenescem-lhe as pupilas ao reflectirem esses minúsculos milhares de partículas furiosas como átomos. Certifica-se ainda de que as escolhas foram certas, de que está perante os melhores. Não pode ter a certeza, e as pálpebras enrugam-se de inseguras. Mas tudo está consumado, o acto adivinha-se na potência do olhar, o gesto fervilha na ponta dos dedos. Os sacrários já não podem conter essa viva matéria divina, esse murmúrio gasoso de aclamação.
Agora há, no peitoril das janelas, filas e filas de frascos. Arrombadas todas as gavetas, o contador tem o ar de cripta violada por mãos bárbaras. Ilusão: a dois passos, o sacerdote cauto vela ainda o seu sagrado conteúdo. Depois, uma a uma as tampas são retiradas, os gargalos voltados ao céu. As moscas hesitam por momentos, multidão de fiéis habituados. Porventura receiam a perda do conforto eucarístico: doravante estão por sua conta. Mas logo é o exílio alado, e escurecem em zumbido o céu nítido. O homem, esgazeado, ferve nos olhos uma lágrima, um soluço na garganta. Todo ele é olhos para o enxame livre que criou.
A sala parece mais escolhosa e escura, como se sobre ela pesasse o abandono. Até o velho mingou na sua estatura e na sua divindade. Felizmente compreende, como dono dos mistérios, que o retorno ao humano era inevitável, a divindade não se pode guardar. Mas realmente há nele uma desconfiança de profeta traído, uma tristeza calcada de mártir. Os forros gastos das gavetas são páginas brancas de escrituras mudas. Enquanto, a pouca distância, a praga escreve sinais confusos no céu.

15 de abril de 2016

A gaveta escondida #4: "ÂNGELA"

Glorioso 1991… Passo o ano em Pau (França), como aluna Erasmus. Novas experiências, novos amigos, novas leituras. Entre outros, descubro Giono, Michaux, Céline… O absurdo, a violência, a perfídia (esta que desde cedo se manifestou, tenho de ser sincera, no que escrevi: possivelmente desde a redação infantil em que, no desenlace de um diálogo banal, a Senhora Galinha desejava ao Senhor Peru «um Feliz Natal»…), entram definitivamente no meu estilo. E assim surge “Ângela”. Mauzinho, o conto, em todos os sentidos, penso eu agora. Mas, para que não me acusem de narcisismo, revelando só textos jeitosos, também ele sai da gaveta escondida. Nem que seja para nunca mais o ver.

ÂNGELA

Um jeito bruto de pedra e a obsessão em não se modificar: Ângela sempre me pareceu perfeitamente ridícula. Um porte desastrado, um timing perpetuamente desajustado, uma teimosia na palavra errada, uma total falta de tacto. A minha primeira reacção ao vê-la tinha sido a de pensar que precisava de óculos, por estar a ver uma imagem desfocada: olhos, nariz, orifício bucal, tudo naquela cara parecia a façanha temporária de um acaso mauzinho, que tivesse ido buscar isto acolá, aquilo além, e amassado o conjunto. O engraçado era observar o carinho que ela votava ao arranjo deselegante das suas feições. Ângela achava-se bela, o que a tornava insuportável. Uma mulher feia pode fazer-se discreta, amável até, desde que não insista em exibir orgulhosamente o seu rosto. E esta, francamente, era toda arrogância por cima do pescoço gordo. Sinceramente, nem eu posso dizer que a Ângela era feia. Cada traço seu poderia ser aceitável, se isolado: o conjunto é que era um enxerto imperfeito, desconjuntado, vergonhoso. Por isso, era uma tremenda ironia ver até que ponto ela gostava de si própria e teimava em não mudar.
Ora eu sou também um homem teimoso, adoro os desafios difíceis. Apostei perante meio mundo que haveria de deitar abaixo a Ângela e reconstruí-la das ruínas. Nestes casos, há sempre quem pergunte: por quê tanto interesse nela?... Por quê?!... Desfastio, acho eu. Cansaço das mulheres mais ou menos perfeitas, em que a simetria do olhar casa com a curva dos lábios com rigor. E também irritação. Enerva-me, dum modo geral, todo o tipo de gente com a mania de que é boa sobretudo quem, decididamente, não é. É uma obra de caridade que eu faço à humanidade, limpá-la de vez em quando de alguns torrões abjectos.
No entanto, usar de força com a Ângela seria inútil, como tentar arrancar lapas com os dedos. Ela é o tipo de pessoa que se fortifica com a ameaça, que se isola com lágrimas raivosas a qualquer justa crítica. O que me restava fazer?... Namorei a Ângela. É verdade. Não há nada de estranho nisso. A única maneira de corromper um organismo horroroso mas são é a do vírus subreptício, que o torna a pouco e pouco vulnerável. Só por um vírus de amor rasteiro, estupidificante, a Ângela poderia ser vencida. Só num momento de singular fragilidade eu conseguiria lançar-lhe o insulto que a derrubasse, a enlameasse, que, em última análise, a purificasse da sua cegueira. A Ângela, claro, caiu como um patinho feio, muito mais facilmente do que certas mulheres a quem uma beleza real mas mediana traz sempre um acompanhamento de insegurança que as faz serem desconfiadas. Iludida consigo mesma, a Ângela achou que podia perfeitamente ter-me iludido.
Quanto a mim, joguei o meu papel na perfeição, o que não foi nem fácil nem extraordinariamente custoso. Questão de habilidade. E estômago. Afinal, apenas mais um jogo. Beijá-la, por exemplo, era uma sequência de responsabilidade, de gestos concatenados, um exercício para profissional. Para não sucumbir, eu tinha de me concentrar primeiro nos seus olhos azulados, abstraindo-me das sobrancelhas ou da cana do nariz que, francamente, já não tinham nada a ver. Depois, era aproximar-me dos lábios, evitando encarar aquela fileira de dentes horríveis, encavalitados, a avançarem sedentos para mim. Sozinhos, os lábios dela passavam por macios. Mas assim que a sua língua se aproximava da minha, era logo a imagem degradante dela a mastigar que me vinha à cabeça, quando eles ficavam esguios e gordurosos como bichas. Enfim, eu safava-me. A custo, mas safava-me.
E conversar com a Ângela? Desafio supremo ao meu self-controle. As suas ideias estúpidas, impermeáveis, rígidas, a escoarem-se numa voz engrumada, incerta, são o que eu conheço de mais detestável. Perante o mais puro céu azul, a Ângela seria capaz de convencer-se de que iria chover, e ofender-se com quem quer que ousasse sugerir o contrário. Houve alturas em que eu pensei que iria estourar, que seria impossível conservar por muito mais tempo a máscara de plácido encantamento, de suave acordo... Tentei distraí-la, distrair-me, com saídas, animação. Mas entrar com ela num lugar público representava um desafio colossal. Por entre chávenas partidas, molhos entornados por cima da toalha, hesitações parvas ante portas que não se sabe se são de puxar ou de empurrar, o seu sorriso cândido, pardacento, parecia a qualquer momento a gota de água que me fizesse transbordar. Uma vez, na discoteca, cheguei a ter pena dela, desamparada, desengonçada, em vias de se desintegrar. E muito satisfeita, vermelha, toda inchada de orgulho por eu estar ali, consigo. Se não fosse o Rui chegar, e entretermo-nos muito a rir das maneiras dela, acho que teria ido arrancá-la piedosamente àquele suplício. Assim, ela dançou sozinha até não poder mais, até o cabelo lhe pingar oleoso na testa, até me sugerir, esgotada, rendida, que fôssemos indo.
Porém, lentamente, à medida que a Ângela se apaixonava por mim, eu ia tendo mais margem de manobra para a contestar. Comecei por conseguir convencê-la de ninharias, contrariá-la em pequenas coisas, vendo, satisfeito, que ela se submetia às minhas decisões. Lembro-me, por exemplo, de um cachecol horrível, peludo, que ela enrolava à volta das suas bochechas encarnadas e lhe dava a aparência de um bicho. Pedi-lhe que não o usasse, e ela, para surpresa minha, acedeu, ficando na mesma feia, mas, realmente, menos bestial. Mas nenhuma pequena concessão da Ângela significaria para mim a vitória. Limitar-me a isso seria como pensar que, por estar retocado ou maquilhado, um monstro é menos um monstro. O que eu tinha era de a derrubar.
Então, uma noite que foi tudo menos bela, convoquei todas as minhas forças físicas e espirituais e decidi levá-la para a cama. Confesso que tinha adiado a coisa o mais que pudera, dominado por uma espécie de cobardia sonolenta, mas agora era urgente demais. A Ângela poderia começar a estranhar o meu pudor, o meu respeito. E depois, a perspectiva de a rebaixar animava-me a esse supremo sacrifício - o último, o irreversível, que me libertaria da minha cruz pesada e a ela do seu jeito de ser. Ui... Fui-me safando o melhor que pude entre aquelas formas despropositadas, ossudas em demasia ou lassas como carne morta. A certa altura, não pude mais, e, achando que a espécie de grunhidos da Ângela anunciava a sua rendição, sussurei-lhe: "- Meu Deus, és feia... És estúpida de todo...". Olhos cerrados, beiços arquejantes, a mulher parecia satisfeitíssima de si e de mim, como se não tivesse entendido o insulto. Então exclamei, abanei-lhe a cabeça com brusquidão: "- Ouviste?!... És horrível!...". Um segundo de angústia, até ela abrir aquele olhar azul desbotado, feito estranheza primeiro e em seguida doçura: "- E tu... Tu amas-me mesmo assim, querido...". Não sei o que foi mais embaraçoso, se a sua mão suada a acariciar-me o cabelo como se eu fosse um caniche, se aquela chuva remelada de nomes ternos que se lhe seguiu... Acho que foi imaginar a minha própria cara incrédula e envergonhada. Eu, esforçado, sujo, preso num abraço da Ângelazinha. O que é que eu fiz?... Olhem, adormeci, rezei para não acordar. Mas acordei, com o cheiro esquisito de ser um homem besuntado, com a dor do café com leite a ferver que ela, com o tabuleiro e as torradas, despejou, desastrada, servil, por cima de mim...

13 de abril de 2016

A gaveta escondida #3: "A SEGUNDA PARTE"

Avancemos para o ano de 1996. Tenho 24 anos e a intuição de que… ok, talvez um dia venha a escrever bem. Jovem adulta, releio os contos que escrevi antes, durante a adolescência; acho-os imperfeitos, empolados, pretensiosos; por outro lado, às vezes, sinto que já está qualquer coisa lá. E abalanço-me para a escrita deste “A segunda parte”, homenagem secreta a um amigo tímido, e que assinala, pelo menos para mim, o início da segunda fase da minha carreira como contista… whatever that is.

A SEGUNDA PARTE

Ela entrou, viu-o logo, e sorriu. Dizer que muitos olhos se pousaram sobre ela à medida que atravessou os poucos metros desde a entrada até ao balcão onde ele estava sentado não era exagero. Talvez não fosse bonita, mas tinha um sorriso deslumbrante, ou milhares de sorrisos deslumbrantes, que trazia acertadamente conforme a ocasião, sem parecer fazê-lo de forma calculada. Aquele sorriso, por exemplo, ele já o vira muitas vezes. Era o sorriso de depois de entrar nos lugares públicos e o ver, um sorriso macio, silencioso, que lhe rasgava os olhos esverdeados e o arrepiava porque o fazia sentir ao mesmo tempo muitas coisas agradáveis. Sentia que ela era bonita, sentia que aquele sorriso era só dele, sentia que por causa daquele sorriso muitos olhos se pousavam sobre ela e depois sobre ele, seu destinatário evidente, com inveja. Era como se com ela entrasse no restaurante uma onda de afecto, que dissipasse subitamente o desconforto dos dias molhados de inverno, limpasse do chão de tijoleira as marcas de lama deixadas pelas botas e pelos guarda-chuvas ensopados, e o aquecesse por dentro como o leite quase a ferver que a mãe lhe trazia à cama quando ele era pequeno. E esse conforto aumentava o encanto dos dois beijos na face com que ela o cumprimentava, porque a intimidade deles ainda não tinha passado disso.
- Esperaste muito?
- Não, cheguei agora mesmo.
- Desculpa. Demorámos a fechar.
Pousou a pasta, levemente afogueada, sentou-se no banco que ele reservara com a gabardina dobrada, desembaraçou-se do casaco e arrumou-o sobre os joelhos, com o forro virado para o lado de fora. Era um daqueles casacos num material moderno, a imitar pele, ou melhor dizendo, sem imitar pele, comprido e preto. Era parecido com muitos casacos que as mulheres com quem se cruzava na rua usavam naquele inverno, as suas colegas, a sua irmã. Até a sua mãe tinha um casaco parecido com aquele, que quase nunca usava, porque quase nunca saía de casa. Mas o dela parecia-lhe diferente de todos os outros, no modo como lhe realçava o rosto, os olhos, o cabelo, que ela usava sobre os ombros ou um pouco acima dos ombros e tinha um tom arruivado. Nessa tarde, em que o ar embaciado do restaurante contrastava com o frio que fazia lá fora e ela o despiu com naturalidade, dois ou três pares de olhos voltaram a pousar-se no seu corpo quando o gesto decidido revelou a curva dos seios. Reconheceu num instante a camisola vermelha de decote subido que ela trazia da primeira vez em que se tinham visto, e por cima qualquer coisa escura, um lenço ou uma echarpe. Num segundo, percebeu que estavam num daqueles dias em que ele a achava quase insuportavelmente bela, e desviou o olhar. Percorreu os pratos alinhados sobre o balcão de fórmica, sobre os quais se debruçava uma fila de homens e mulheres quase todos jovens ou ainda novos, como eles a meio de um dia de trabalho, trocando palavras quase sem se olharem entre duas garfadas ou o despejar do copo.
- Hoje a carne não me parece má.
Achou a frase ridícula, mesmo antes de a concluir, mas ela pareceu não reparar.
- Sim? Pode ser.
A resposta foi para ele e para o empregado, que interpretou a frase dela e o silêncio dele e pediu dois pratos para dentro, enquanto limpava com um pano húmido a área de balcão à frente deles e lhes punha debaixo dos braços dois toalhetes de papel. Levantaram obedientemente os cotovelos e depois olharam-se e inclinaram-se um sobre o outro, como costumavam fazer antes de começarem a falar, ele tentando disfarçar o nervosismo com frases vagas e de pouco sentido, então, como estás, que tens feito hoje, ela sorridente, outro sorriso, discreto, acolhedor, cheiroso (hipálage, ele é que de tão perto conseguia sentir o perfume dela), o sorriso que ele imaginava que ela pudesse ter se estivesse sentada à lareira com um copo de vinho na mão, um sorriso que significava que ou ela não estava nervosa ou o seu sorriso servia para apagar todos os traços de nervosismo, pelo menos aos olhos dele. Muito daquilo explicava por que se sentavam ao balcão sempre que iam almoçar naquele restaurante onde se tinham encontrado por acaso da primeira vez, e não a uma mesa. Comer ao balcão era mais rápido, claro, e ambos tinham pressa, mas ele queria acreditar que essa não era a única razão. Era como um gesto de intimidade, ou um prenúncio de intimidade, ou pelo menos a garantia de que ela não estava ali a almoçar com ele apenas como podia estar a almoçar com qualquer outra pessoa, só para ter companhia ou só porque era inevitável. Era como um ritual, a repetição da primeira vez.
Dessa vez ele não a vira entrar, curvado que estaria sobre o prato, nem ela certamente trazia o sorriso. Ouvira uma voz feminina perguntar, está ocupado (o banco ao lado), ele dissera não, por favor, enquanto instintivamente se encolhia no seu lugar para dar espaço e se voltava para a voz, e então vira-a, enquanto ela dizia obrigada, com licença, e lhe sorria com o primeiro sorriso, discreto mas firme, e ele que tinha ido comer ali por acaso, só porque tivera uma discussão com um dos colegas e não lhe apetecia ir à cantina onde eles todos estavam, pensou, que sorte. Mas não tinha sido amor à primeira vista. Ela não olhara para ele nos primeiros cinco minutos e ele, que não tinha muita iniciativa, limitara-se a comer. Foi ela quem se voltou para o lado dele, tão de repente que ele pensou que lhe ia dizer qualquer coisa, mas só para reagir a algo que ouvira na televisão, que estava sempre ligada, pousada numa prateleira ao lado dele. Viu-a de perfil, os olhos pareceram-lhe enormes, desmesuradamente erguidos, mas quando olhou para o ecrã a ver a notícia que lhe tinha chamado a atenção, foi como se apanhasse com um aguaceiro. Não era política, não era uma imagem de guerra, não era uma entrevista. Era um jogo de futebol.
Incrível. Incrível para ele, claro, porque todos, clientes e empregados, ficaram especados a olhar para o mesmo, e riam, e abanavam a cabeça, e exclamavam em voz alta, olhando uns para os outros e para os lados, como se quisessem partilhar à força o que diziam ou medir o efeito das suas palavras, e ouviam-se insultos cruzados, palermas, estúpidos, otários. O homem que comia à sua esquerda, e que ele não conhecia mais intimamente do que qualquer outro cliente, virou-se para ele a abanar a cabeça e a palitar os dentes, e disse-lhe:
- Palerma. Não tem futuro.
Demorou uns instantes a perceber que o comentário não era sobre ele próprio nem sobre o seu futuro, mais ou menos quando o vizinho continuou:
- Este gajo não aguenta nem mais um jogo. Se eles empatarem ou perderem no sábado…
E um gesto indicativo completou a profecia. Ele balbuciou qualquer coisa, enquanto o rosto do vizinho regressava ao televisor, onde passavam as mesmas imagens, sim, até ele, para quem todas as imagens de um jogo de futebol pareciam iguais, podia ver que eram rigorosamente as mesmas, repetidas à exaustão, de dois lances em que dois jogadores da mesma equipa falhavam golos, escandalosamente, segundo se dizia, e como o tom exaltado do locutor confirmava, e depois uma cena onde um homenzinho de bigode, vestido de fato e gravata, se retirava encolhido para debaixo de um túnel, enquanto os espectadores furiosos se concentravam em arrancar as redes que isolavam o relvado e em projectar-lhe objectos estranhos, que deviam atingi-lo menos que os insultos que cuspiam pelas goelas esforçadas. Sem querer, sentiu um nó na garganta, como se se sentisse subitamente solidário para com aquela criatura. O apresentador passou à notícia seguinte, e outras seguiram-se, mas no restaurante ficaram todos a discutir o jogo, e mesmo ele, tão obstinadamente alheio ao mundo do futebol, percebia contra vontade que alguns eram a favor mas quase todos contra aquele homenzinho de bigode que ele vira encolhido como um bicho indefeso. Olhou para lado oposto, e o olhar cruzou-se com o dela, que só então descia do ecrã, com um brilho divertido, levemente irónico, e um sorriso, mais bonito que o primeiro, entre o tímido e o cúmplice, sublinhado com um ligeiro encolher de ombros. Não percebeu se ela encolhia os ombros com desprezo pela situação, ou pelo homenzinho de bigode que todos pareciam achar desprezível, ou simplesmente pelo jogo, hipótese que ele preferiria, mas aquele sorriso restituiu-o à sua primeira impressão, a de que estava sentado ao lado de uma mulher linda, e ajudou a diluir-lhe a irritação. Ele, que detestava futebol e pessoas que gostavam de futebol, e futebolistas, e árbitros, e jornalistas, e programas desportivos. E foi ela que resolveu o dilema, a seu próprio favor, evidentemente, quando disse, quase sem olhar para ele, mas num tom de voz que lhe era evidentemente dirigido:
- Parece que é a notícia mais importante do mundo.
- É mesmo. Uns segundos para o Médio Oriente, outros para a situação económica, e o resto é preenchido com a tribo do futebol.
Disse tudo seguido, sem pensar. Só quando acabou é que se deu conta que nunca ousava falar assim com desconhecidos, muito menos com uma mulher, ainda que a frase fosse sua velha conhecida. Costumava repeti-la, com ligeiras variantes, sempre que, com mais ou menos humor, queria exprimir o seu ódio pelo futebol e pelo que achava que o futebol representava.
- Ah, o Desmond Morris.
Olharam-se e sorriram, ele encantado. Sempre que encontrava alguém que não gostava de futebol, sentia-se reconfortado. Ela pareceu-lhe uma daquelas pessoas que olhavam o jogo com ironia, com sarcasmo. Era uma posição diferente da sua, que simplesmente fechava os olhos à realidade, recusando-se a vê-lo, a ouvi-lo, a comentá-lo. Mas eram posições convergentes. E sem saber como, isso bastou para começarem a falar, primeiro sobre Desmond Morris e os outros livros, depois sobre outros sociólogos, depois ainda sobre as marcas da sociedade actual.
No fim do almoço, ele sabia que ela trabalhava numa livraria, gostava de ler, estava a tirar um curso de bibliotecária. Ela espantou-se quando ele disse que era poeta nas horas em que não geria as economias alheias, gostava de Cesário e de Pessanha e de todos os poetas de quem ela gostava. Ao fim daquela hora, ele sabia que ela tinha gostado de estar a falar com ele, pois também ela não tinha sentido o tempo passar, e só muito depois do café olharam para o relógio e fizeram a mesma expressão aflita, e pagaram. A luz aguda do sol tímido caiu de repente sobre as feições dela, como se as revelasse, e ele pensou numa frase que era quase textualmente um dos seus versos, ela é mais bonita no Inverno. Ela apontou rapidamente na direcção da livraria em que trabalhava, ele fez o mesmo com a agência bancária, apertaram as mãos, e ela disse:
- Até qualquer dia.
E claro, não fora um dia qualquer, fora o dia seguinte, e ele nunca mais comeu com os colegas. Assim que pôde, saiu quase a correr para o almoço, sem dar explicações aos colegas, com quem aliás nunca conversava muito, entrou no restaurante e esperou por ela, ansioso por saber se teria o hábito de comer ali ou não. Ela chegou, olhou para ele, não sorriu com os lábios mas levantou os olhos de forma interrogativa e sorridente, como quem pergunta, então o lugar aí está vago, e ele acenou que sim, fingindo retirar casualmente a gabardine de cima do banco ao lado, quando a instalara ali para o guardar.
- Olá.
- Ora viva.
- Está à espera de alguém?
- Não, como sozinho, isto é, como consigo.
E ela sorrira, e como por milagre as frases dele fluíram tão naturais e soltas como aquele sorriso, e o resto fora uma sucessão de almoços, há muitas semanas. Nunca se encontravam fora daquela hora mágica em que almoçavam. Despediam-se lá fora, nas primeiras vezes com um aperto de mão, depois com dois beijos como amigos, e ele ficava discretamente a vê-la afastar-se, estranhamente frágil, parecendo mais pequena no meio da confusão da gente, do trânsito, e do cinzento dos prédios.
E os fins de semana passavam devagar, irritantes. Os dias vazios, com aguaceiros fortes, filmes alugados, como já quase ninguém fazia, pizza que encomendava ao almoço e à tarde andava aos bocados pelos sofás, poemas começados em folhas soltas, a mãe a telefonar-lhe, filho, então não vieste cá hoje, o teu pai queria ver-te, há tanto tempo que não vens cá, e ele a desculpar-se, sabendo que se sentia culpado por não ver os pais há tanto tempo mas que não estaria mais feliz se tivesse ido, e o futebol. À noite, quando queria ver um bom filme, eram as transmissões em directo, ou os programas de antecipação. Depois as reportagens, os programas interactivos, os concursos, os telejornais. Apetecia-lhe sair, mas era um inverno desolado por todos os lados, lá fora, onde o ruído dos autocarros a fazerem as curvas trazia o som de poças de lama a serem calcadas e ocasionalmente o protesto de alguém que ficava encharcado, em casa, onde ele tinha sempre frio e dependia dum pequeno aquecedor eléctrico para não morrer de desânimo. E só ao domingo à noite, quando o fim de semana estava quase acabado, deitado na cama com um saco de água quente ao lado, conseguia pegar no livro da Clepsidra e ler os versos que o punham mais perto dela, porque ela gostava deles

Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

E os almoços sucederam-se, tantos quantos os dias da semana. Era uma hora, ou duas, que arrancavam aos seus horários apertados e prolongavam como podiam sem dar a entender um ao outro que as queriam prolongar, como quando ele a surpreendeu na livraria e ela lhe mostrou as novidades das estantes (e ele achou-a bonita, mas uma outra mulher, sem o casaco, sem o cachecol, perfeitamente segura naquele espaço que ele não conhecia e que não era o espaço dos dois). Ou como quando ela o foi esperar à porta da agência num dia em que saiu mais cedo, discretamente encostada à montra que prometia a melhor taxa de mercado no crédito à habitação, de modo que quando ele e os colegas saíram viram-na todos a sorrir para ele, e ele acenou-lhe e caminhou para ela, fingindo displicência nos passos, num júbilo secreto porque era a primeira vez que se sentia superior aos seus colegas de trabalho. Mas quase sempre era só aquela hora, naquele restaurante de gente apressada, mal decorado, de comidas e repetitivas, que talvez por isso se chamavam combinados, com as cabeças quase encostadas, para que se conseguissem sentir apesar do cheiro a fritos, das vozes misturadas, do ruído de fundo da televisão. Uma ou duas vezes foram comer a outros sítios, mas era como desfazer o ritual. Perdiam tempo a escolher a mesa ou a esperar pela mesa, hesitavam ao pedir o prato. Ao seu lado vinha sentar-se gente diferente da do costume, que, só por ser estranha, os distraía. Habituou-se a esperá-la no mesmo sítio e nos mesmos dias, a vê-la chegar com um sorriso que era só dele, que começava nos olhos e acabava nos lábios.
Até àquela tarde igual às outras, em que a meio do almoço o mundo inteiro pareceu ficar suspenso de uma notícia. De repente, houve alguma coisa na televisão que rompeu o laço que os prendia, e os olhos dela, verdes e imensos, saíram dos dele, subiram, ficaram presos, e os dele seguiram-nos.
Era num campo de futebol. Vinte ou trinta jogadores, todos em calções apesar da chuva miudinha e fria que era a mesma para toda a gente naquele dia de inverno, saltavam e esbracejavam ritmadamente sob o olhar atento de dois ou três sujeitos, talvez treinadores. De repente, a imagem de fundo tornou-se um pormenor. No primeiro plano, um rapaz esbelto, moreno, com um daqueles corpos e rostos estupidamente perfeitos, debruçava-se sobre a perna direita, enquanto dois homens de maleta, médicos ou coisa do género, lhe examinavam o joelho. Era um rapaz bonito e o realizador devia ser realizadora, porque a certa altura o ecrã ficou cheio com a cara dele, os olhos castanhos enormes, a barba por fazer, a boca carnuda entreaberta. Não era preciso ser gay nem particularmente sensível para perceber que aquele rapaz devia ser muito atraente. Olhou para ela, absorta. No ecrã ainda estava ele, irritantemente bonito, na expressão de desolação ou de dor com que acompanhava o que os médicos lhe diziam. E ela olhava-o, com os olhos enormes erguidos para ele, as pestanas suspensas. Teve ciúmes. E sentiu-se injusto. Era um instinto, era só um olhar. Nem sequer era um olhar como os que ela lhe dava a ele, quando ele lhe falava de alguma coisa importante, do seu trabalho no banco de que dependia para ser independente e poder sonhar em começar a publicar livros, das suas poesias que um dia lhe oferecera e ela comentara no dia seguinte, muito entusiasmada, das suas desavenças com o pai e das queixas da mãe (embora ele procurasse sempre fugir a esse assunto). Não era um olhar como quando ela o ouvia e os olhos dela se afogavam nos dele, meigos, quase transparentes, até que ele se perdia e sorriam ambos. Suspirou imperceptivelmente e voltou-se para ela, ao mesmo tempo que ela se voltou para ele, e então o mundo tremeu quando ela disse de uma vez só:
- Coitado. Vai estar uns meses parado. Quem é que pode ir para o lugar dele? Aquele brasileiro? Achas?
E antes mesmo que ele pudesse duvidar do que ouvira e esperar um milagre, podia ter ouvido mal, podia ter sido outra pessoa a falar, podia ter sonhado, ela prosseguiu, naturalmente, enquanto cortava um bocadinho de pão:
- É verdade. Nunca me disseste qual é a tua equipa… Sim, de que clube és?
E ele não arranjou mais nada para dizer:
- Nenhuma. Não gosto de futebol.
- Não? A sério? Porquê?
Eram perguntas que ele conhecia muito bem. Ouvira-as centenas de vezes ao longo dos seu trinta e cinco anos de vida, quase sempre seguidas, as três, por essa ordem. Ela dissera-as de forma mais gentil, natural, como eram geralmente naturais os seus gestos e desafectadas as suas reacções, mas aquelas palavras magoaram-no, como se a afastassem dele e a aproximassem daquele mundo de gente que lhe passara pela vida toda com as mesmas perguntas:
Não? A sério? Porquê?
A primeira de surpresa, a segunda de dúvida, a terceira, a pior, a que doía mais, que era realmente uma pergunta e obrigava-o a justificar uma parte de si. Lembrou-se das cenas no trabalho, quando os colegas se envolviam numa daquelas discussões sobre foras de jogo de que ele forçosamente se ausentava, dobrado sobre o jornal que já lera ou concentrado a mexer a chávena de café, esperando que não o notassem. Lembrou-se, muito tempo antes, de um miúdo tímido a descalçar as sapatilhas no balneário, que não sabia falar de futebol e muito menos jogar futebol, e quando o professor de ginástica o obrigava a entrar em campo era insultado pelos colegas da sua equipa e ridicularizado pelos adversários. Outras recordações mais fundas doíam-lhe, sem que quisesse chegar-lhes. Mas quando por causa do futebol tinha de sentir o que o separava dos outros, a garganta doía-lhe com uma dor que era sempre a mesma e vinha de muito longe.
- O que foi, dói-te alguma coisa?
Doía. Sentia a garganta apertada como se o estrangulassem, como se àquelas recordações se juntassem outras que não tinham nada a ver com o futebol, mas era como se fossem suas aliadas (a vez em que reprovara no exame de condução, a primeira namorada que o deixara), sentia os olhos arderem por conter lágrimas. Mentiu:
- Não é nada. Acho que a maionese me está a fazer mal.
Ela inclinou o prato.
- Come as minhas batatas que eu como a tua salada… A sério, não me importo…
E insistia, afagando-lhe a mão como nunca fizera, com uma simpatia que o teria feito suspirar de felicidade um minuto antes.
À noite não escreveu. Sentia-se vazio de ideias. Era como se o frio (o aquecedor que ele cobardemente costumava arrastar atrás de si do quarto para a sala e da sala para o quarto como um pequeno cão estava avariado) lhe tolhesse o pensamento e os dedos. Era sexta-feira. Não telefonou à mãe. Sabia que esse seria o décimo fim de semana sem ir a casa dos pais, quase três meses sem os ver. Atirou com o caderno para o lado e sentou-se no sofá. Sentia uma pulsão dentro dele, como um desejo de veneno. Ligou a televisão. Procurou um programa sobre futebol. Não foi difícil. Apagou o som, para fugir àquelas frases absurdas sobre realidades de que nada queria saber, metáforas desperdiçadas que o faziam sentir-se mal, trincos, líberos, foras-de-jogo, jogadores amarelados, miolo, moldura, e concentrou-se em observar os jogadores, para ver se seriam todos como aquele rapaz moreno. Desenganou-se. A maioria eram certamente rapazes bem feitos, mas andavam longe da perfeição. Muitos eram baixos, carregavam demasiadas tatuagens ou tinham os joelhos deformados. As caras, então. Narizes compridos, orelhas de fora, dentes estragados, brincos de mau gosto, penteados estranhos com travessões e fitas como as meninas dos colégios. Hábitos sórdidos, como gesticular e pronunciar palavrões sempre que eram contrariados pelo árbitro, ou projetar expectoração sobre o relvado, gestos supersticiosos que envolviam sinais da cruz, beijos na aliança, coreografias estranhas depois do golo. Conhecia aquilo tudo. Eram repetições dos rituais tão bem descritos naquele livro da Tribo do Futebol que o pusera a falar com ela pela primeira vez. Havia meia dúzia deles parecidos com o rapaz moreno ou até mais bonitos. Mas, se a amostra era representativa, pareciam raros. E depois, o que é que ela tinha em comum com aquela fauna? Ela, que tinha os gestos naturais e certos, que saía do restaurante tão limpa como tinha chegado, parecendo que o perfume dos seus cabelos era imune ao cheiro a fritos e que os seus dedos nunca tocavam nos molhos de gordura que escorriam das bordas do prato, para depois atravessar a cidade, sempre bonita debaixo dos aguaceiros, apesar do fumo dos escapes que ficava mais pesado sob a chuva, dos buracos no passeio e das poças de lama. Mas o que ela dissera e o modo como o dissera deixavam bem claro que ela gostava de futebol. Por que seria, por que seria. E enquanto repetia esta pergunta e batia com os pés gelados no soalho, por nervoso ou para se aquecer, era como se ela se distanciasse dele, era como a repetição dos fins de almoço, quando ele se virava para a ver desaparecer no meio do cinzento, pequeno vulto amado, recortado nitidamente no frio da cidade.

Corolas, que floristes
Ao sol do inverno, avaro,
Tão glácido e tão claro
Por estas manhãs tristes.

- É o jogo. A beleza do jogo. As emoções…
Foi o que ela lhe respondeu naturalmente, quando ele arranjou coragem para lhe perguntar, com o tom mais neutro que pôde arrancar à garganta tensa:
- É verdade? Que história é essa entre ti e o futebol? É raro encontrar uma mulher que goste.
A última frase fora arranjada à pressa, para disfarçar. E ela completou:
- Olha que não, não são tão raras como isso, as mulheres que gostam de futebol. Porquê?
Não se podia dizer que ele não contasse com aquele contra-ataque. Estavam parados no centro da rotunda onde normalmente se despediam, desde o dia em que ele começara a acompanhá-la quase até à livraria só para aproveitar a presença dela mais uns instantes.
- Por nada. Achei engraçado. É que eu não aprecio mesmo nada e achei engraçado que, com tantas coisas que temos em comum, tivéssemos esta a separar-nos.
A resposta fora preparada. Pretendia soar displicente, casual, salvaguardando a liberdade dela, sublinhando discretamente o quanto estavam unidos, desvalorizando o que os separava, insinuando subtilmente que essa pequena diferença era para ele um factor de perturbação. Ela pareceu entender tudo, menos a última parte. Estavam frente a frente e ela brincava com a ponta do guarda-chuva no mosaico do passeio. Encolheu os ombros:
- Bem, tinha de haver alguma coisa. É pena não gostares de futebol, podíamos ir ver um jogo este domingo. Sendo assim, é melhor irmos ver um filme.
O sorriso dela era diferente de todos os sorrisos que ele já lhe vira, mas era como se todos viessem embrulhados nele, para o tornarem mais forte. Depois que os aguaceiros tinham passado fazia um vento frio, que lhes desfraldava as pontas dos casacos e lhes punha os cabelos em rebuliço. Era um meio sorriso, suavemente malicioso, com cabelos à mistura nos cantos da boca. Ela riu-se. Ele riu menos, mais emocionado que embaraçado, subitamente liberto da angústia que o oprimira, sentindo-se ridículo. Ridículo por ter dado importância àquele assunto, porque sentia que devia ter antecipado aquele passo que ela tão elegantemente dera, soprando aquela sugestão que era como um aroma que iria daí em diante envolvê-los a ambos. Mas era um ridículo diferente. Não era o ridículo do rapazinho magricelas encolhido no balneário, nem do homem que a meio da manhã tinha de fingir ler o jornal enquanto os colegas discutiam à exaustão o lance da grande penalidade. Era um ridículo de homem tímido, pouco confiante, apaixonado, mas normal, preso naqueles olhos sorridentes. Sentiu que devia dizer alguma coisa, reforçar aquele laço subtil que ela lhe estendera e para já tinha a força de um fio de cabelo.
- Sim, isso era óptimo. Ia adorar ir contigo ao cinema, ou ao teatro, ou onde quiseres.
Como se fossem uma entidade independente, mais afoita do que ele, os seus dedos avançaram para o rosto dela, afagaram-lhe ligeiramente a curva do queixo, desviaram dos lábios carnudos um fio de cabelo. Depois pousaram sobre a mão dela, ainda presa ao guarda-chuva, que passou naturalmente para a outra mão, para se libertar e apertar-se na dele.
Almoçaram nesse domingo e o simples facto de se encontrarem fora da rotina do costume já era significativo. Depois, decidiram caminhar. Ela embelezara-se mais do que o costume, os olhos pareciam mais claros debaixo da camada de rímel e os lábios estavam amaciados por um traço de baton. Trazia um vestido de lã que ele não conhecia, e por cima um casaco claro que não era o do costume. Não quis dizer-lhe que preferia vê-la com a roupa de todos os dias, vestida com a graça que arrancava olhares quando entrava a sorrir no restaurante. Ele, pelo contrário, escolhera uma roupa mais casual do que a que usava à semana, mas não se sentia incomodado. Estava tão bem, tão seguro de si mesmo, que demorou a percebeu que fazia um frio de gelo, como se o céu se preparasse para nevar ou para chover muito, e ela tremia dos pés à cabeça. Decidiram ir ao cinema. Quando o filme acabou, ele beijou-a. Depois, ela convidou-o a ir a sua casa. Parecia uma estratégia de sedução. A casa era pequenina como ela, encaixada no último andar de um prédio antigo na zona velha da cidade. Mostrou-lhe as estantes cheias de livros e as edições coleccionadas quase compulsivamente do Livro de Cesário Verde e da Clepsidra de Camilo Pessanha. Propôs-lhe um chá, para se libertarem do frio. Enquanto esperava na cozinha, ele espreitou pela janela que dava para o rio, como se quisesse apreender tudo o que era dela, a começar pela paisagem. Numa tarde, ou numas horas, ficara a saber a que sabiam os lábios dela e confirmara o cheiro do seu cabelo. Sentia-se tonto como se o amor deles se estivesse a transferir para uma zona nova, longe da rotina, do cheiro a fritos, dos almoços apressados, uma zona calma, desconhecida, deliciosa, com aroma a chá de hortelã. Agora via o pano de cozinha pousado sobre o lava-louça, os frisos em renda nas prateleiras dos armários, os envelopes abertos dobrados em cima do cesto da fruta, tudo reminiscências de gestos que ele costumava fazer ou das casas em que ele se tinha sentido amado, a da sua avó, a da sua mãe. Sentaram-se à mesa com o chá no meio deles. Havia uma televisão por cima do armário. Ela ligou-a, pausadamente, como se medisse o sentido do gesto. Era a transmissão de um jogo. Não chegou a sentir-se desiludido.
- Não queres ver isto, pois não?
- Deixa estar.
- Está a acabar. Já agora, queria ver.
Não percebia. Ali estavam eles, apaixonados, com uma mesa de madeira a separá-los, ele com as mãos enroscadas na caneca em vez de as ter no cabelo dela, em vez de estarem como ele esperava. O olhar dela estava colado ao ecrã, mas desta vez parecia pouco atento, mais concentrado num pensamento do que nas imagens tontas que ambos mal podiam ver, de lado. Até que ela se voltou de repente e tinha os olhos embaciados.
- O meu pai deixou a minha mãe quando eu era muito pequenina. Aparecia poucas vezes para me ver. Quando vinha, era como se o coração me saltasse da boca. Ele era louco por futebol, e levava-me a ver jogos. Era sempre isso. Nem circo, nem passeios pelo parque. Só jogos. Parecia não perceber que eu era uma menina, aliás, às vezes parecia nem perceber que eu estava com ele. Ao princípio eu não gostava, mas calava-me. No inverno os assentos estavam gelados, e eu punha as mãos debaixo do rabinho para me aquecer. No fim do jogo, tinha as mãos brancas, todas marcadas do peso do corpo. Havia gente a dizer palavrões nas bancadas. Mas o meu pai falava comigo, explicou-me o que era um fora de jogo, ensinou-me a ler nas entrelinhas das jogadas. Dizia-me essas coisas em voz alta, com a mão por cima do meu ombro e a outra estendida para o relvado, a apontar-me os jogadores talentosos, os lances interessantes. Sentia-me orgulhosa quando o meu pai me falava, porque toda a gente o conhecia e ele cumprimentava toda a gente nas bancadas, mas só falava comigo o tempo todo, e quando a nossa equipa ganhava abraçava-me e sorria-me. Eu sentia-me feliz. Claro que isto era de longe a longe, mas a felicidade enchia-me por muito tempo, com um esforço os pormenores davam para duas ou três semanas de conversas na escola. Um dia ofereceu-me uma camisola do meu tamanho. Foi a única vez que eu tive a certeza que o meu pai pensava em mim. A camisola era mesmo do meu tamanho. Um dia desapareceu, pouco depois soubemos que tinha morrido, já há muito tempo que se sabia que ele tinha uma doença. Nunca mais pus os pés num estádio, mas ficou-me o gosto pelo jogo. A minha mãe diz que tenho o sorriso dele. Mas herdar o sorriso de alguém é como ter uma doença hereditária, não depende de nós, não ajuda nada. Tenho o gosto pelo jogo, e isso foi o que eu quis herdar dele. E o futebol é o que me faz lembrar.
Disse tudo de uma vez, quase sem respirar, e ele ouviu-a. Sentia-se tonto, envergonhado, comovido com a história dela. Apetecia-lhe abraçá-la, consolá-la, apetecia-lhe ver aquele jogo e todos os jogos, até se inteirar. Mas em vez disso as palavras brotaram-lhe contra vontade, arrancadas do fundo:
- Quando eu nasci, os meus pais já tinham uma filha. O meu pai jogou futebol desde miúdo, mas nunca saiu das equipas pequenas. O meu avô foi um grande jogador, talvez te lembres se eu te disser o nome, e todos os meus tios e primos. Há um deles que ainda joga para aí, e o pai dele é treinador, acho eu. O meu pai teve uma lesão. Naquele tempo os médicos não eram como agora, e ninguém se preocupava com o meu pai, já veterano, um caso perdido. Fez muitas operações, por iniciativa própria. Eu era miúdo e ainda me lembro das visitas ao hospital, eu, a minha irmã e a minha mãe, cheios de medo das pragas que ele rogava quando lhe tiravam as ligaduras e estendia a perna e via que estava tão perra como antes. Até que decidiu que eu tinha de jogar futebol. Mas eu nunca tive jeito. Fui criado num bairro, um daqueles bairros da câmara onde as casas todas dão para o mesmo pátio. O meu pai levava-me para fora e tentava ensinar-me a driblar. Mas eu nunca tive jeito, os pés tropeçavam um no outro, caía por cima da bola, rasgava os joelhos. O meu pai ralhava, e eu continuava, quase a chorar, e cada vez era pior, porque não via nada por causa das lágrimas. Outras vezes, tentava pôr-me a jogar com os miúdos do bairro, e ainda era pior. Riam-se de mim e diziam que eu não podia ser filho do meu pai, diziam que a minha irmã jogava melhor do que eu, o que até era verdade. O meu pai acabou por desistir. Resignou-se à ideia de que era um desgraçado, um infeliz dum inválido numa família de irmãos talentosos com filhos dotados. Cresci, tirei um curso, mas sempre foi assim. Não sabia jogar futebol, não sabia ver futebol, ainda não sei. O mundo está cheio de pessoas que parecem achar que eu não sou filho do meu pai. Ainda agora, quando eu vou vê-lo, de longe a longe, o meu pai atira-me à cara com o futebol. Viste o jogo, que achas daquele, perguntas a que eu não sei responder, e a que ele sabe que eu não sei responder, e faz de propósito, para me agredir, para me lembrar.
Ficaram calados, dobrados sobre a extensão das próprias memórias e sobre a dor que saía das confissões do outro. Até que, na televisão, um golo e os gritos nas bancadas os despertaram e os fizeram sorrir. Ele olhou-a, quase na penumbra, porque a luz estava apagada e entretanto o tempo escurecera e começara a chover. Mesmo na sombra, ela ali à sua frente era como um remédio para os dias infelizes, um recomeço. E de repente, foi como tudo se resolvesse. Desejou amá-la, abraçá-la, passar com ela o resto do domingo, mas sentia que tinha outra coisa mais urgente para fazer. Disse-lhe, enquanto a acariciava:
- Preciso de fazer uma coisa hoje. Não te importas?
Acenou que não, com um sorriso húmido, tão terno, que quase o fez ficar. Como que inspirado, ele lembrou-se e perguntou:
- Ainda há algum jogo hoje?
Despediu-se dela. Lá fora continuava frio, com um vento forte que vinha da beira rio, e chovia com força. O carro estava gelado. Sentiu o desconforto dos estofos e lembrou-se do que ela contara sobre os assentos frios das bancadas, e percebeu que a amava. Ligou o rádio e sintonizou uma emissão desportiva. Ela tinha razão. Muitas partidas tinham recomeçado, inclusive a da equipa dela, a da equipa do seu pai. Ia a sorrir, conduzindo devagar por causa do piso molhado, al
heio à voz nervosa do relatador, cheia de inflexões e sobressaltos, embalado por outra cadência, a dos versos que ela possuía em várias edições:

Ingénuo sonhador - as crenças d’oiro
Não as vás derruir, deixa o destino
Levar-te no teu berço de bambino,
Porque podes perder esse tesoiro.

Parou o carro no pátio, onde muitos miúdos estariam àquela hora a jogar à bola, se não chovesse torrencialmente. Correu sem guarda-chuva até à porta, bateu quase em surdina, sentiu os chinelos arrastados da mãe, que abriu sem perguntar quem era e sorriu quando o viu. O velhote estava na sala, às escuras, sentado na poltrona, com um cobertor pelos joelhos. Via-o de perfil, a face iluminada pelo clarão do televisor, e um rádio portátil encostado ao ouvido. Provavelmente estava a assistir a um jogo e a seguir outro pelo relato. Reprimiu o gesto de abanar a cabeça com reprovação. Sentia-se calmo, seguro, parecia-lhe que ainda trazia o perfume dela preso nas roupas, nos dedos, ou o gosto de hortelã nos lábios. Abraçou novamente a mãe, que lhe dizia as coisas tontas do costume, filho, há tanto tempo que não te via, estás todo encharcado, e então o pai voltou-se, viu-o, e ele só disse, suavemente:
- Olá, pai. Então, essa segunda parte?

12 de abril de 2016

A gaveta escondida #2: "A VIÚVA ALEGRE"

Dando seguimento à operação de resgate na gaveta escondida das minhas primaveras literárias, é a vez de recuperar o pequeno conto “A viúva alegre”, uma apropriada e recatada narrativa de luto e viuvez… Diz-me a memória que tinha dezanove anos, estava de férias no Algarve e um inseto ferrou-me tão violentamente que o meu braço inchou e a febre instalou-se. O veneno e o calor terão escrito por mim, de um jato, pela madrugada adentro, porque não me lembro de mais nada. No dia seguinte o farmacêutico receitou, a febre foi-se embora e o talento possivelmente também…

A VIÚVA ALEGRE

É difícil arranjar um cangalheiro, na minha terra, que nos apareça em casa àquelas horas de domingo. E quando arranja, a gente sujeita-se. Eu, foi porque já não podia mais. Não aguentava mais aquilo sozinha. Há dois dias que eu e ele esperávamos. Ele, muito repousado, estendido quase levemente por cima da cama feita, os olhos agradecidos afundados para sempre lá para a sua escuridão. E eu inquieta, sem saber o que havia de fazer mais. Os restos dos medicamentos já estavam no lixo. Não havia aspirinas, remédios para as dores que se pudessem aproveitar. A aparadeira estava despejada, lavada duas vezes com lixívia, e secava ao sol do terraço, no meio dos vasos de begónias. A roupa que fora dele estava embrulhada e repartida por sacos pretos, à espera de que o padre a recolhesse, no segundo domingo do mês. Os vizinhos já tinham dado os pêsames há muito tempo, mais ou menos quando tudo começara, quando se soube (nestas coisas de hospital, vida, morte, doenças, abortos, gravidez, os vizinhos, pelo menos na minha terra, são sempre os primeiros a saber) que ele ia morrer. A minha cunhada, inocente de tudo, mandara uns dias antes um telegrama de França, a dizer que já éramos tios do João Miguel. E foi por não aguentar mais os nervos que eu, mesmo sendo domingo, finalmente os chamei.
Apareceram-me dois homens, um velho e um novo, muito parecidos e amarelados, quase tão pálidos como o morto. Entraram-me muito respeitosamente em casa, demoraram muito tempo a limpar os pés, quase me esgaçavam o tapete. E sussuravam de cabeça inclinada, como se tivessem medo de acordar alguém. E eu, meia parva, ao princípio respondia-lhes também baixinho, como se houvesse alguém para acordar. Depois de me darem os seus sentimentos, perguntaram-me onde estava a minha família, quem estava ali para me ajudar. Apontei-lhes o meu quarto. Estava lá a minha família toda. A minha falecida mãe, com o cabelo aos caracóis, ao lado do meu irmão pequeno, no dia da primeira comunhão. Era uma fotografia, claro. E à direita, deitado, o meu marido morto. Estava ali a minha família toda. Infelizmente, nenhum deles me podia ajudar.
Mas os cangalheiros, profissionais experientes, compreenderam que era para entrar. Foi aí que tudo começou. Traziam fita métrica, amostras de pano, parecia que iam dar a provar um fato. Ao chegarem perto dele, o mais novo fez uma vénia discreta, como se o meu homem fosse um santo, antes de começar a apalpá-lo, e o mais velho começou a tirar medidas, parando de vez em quando para esfregar os olhitos acizentados, como se fizesse questão de choramingar. Pelo meio, fazia-me perguntas estúpidas. Se queria de pinho ou de mogno, de que cor seria o forro, se não podia trocar a camisa do morto, para dizer melhor com o caixão. Aquilo começou logo a enojar-me, e o descaramento deles, sobretudo do novo, a mirarem-me de alto a baixo, muito curiosos com o meu decote, com as minhas coxas, a quererem imaginar que utilidade lhes daria o falecido. Mais do que o ar esfomeado deles, irritava-me o desprezo com que mexiam no corpo do meu morto, a maneira como lhe metiam as mãos sapudas, o nojo que eu sabia que eles tinham da sua carne gorda.
Nos últimos tempos, ele entrava no quarto de lado. Foi aquela doença esquisita que lhe deu essa obesidade flácida. Não desfigurou, mas deformou o meu homem. O médico disse-me logo que aquilo só podia piorar. Quando ele ficou de cama, mais para o fim, puxou-me discretamente para a cozinha e disse-me que estivesse preparada. E como ele próprio, o médico, era um homem preparado, entregou-me a certidão de óbito, toda bem feita, só faltava a data. Assim, já ninguém tinha que se incomodar. Eu não tinha de chamá-lo à pressa, e ele não tinha de deixar o carro na estrada e fazer quinze minutos de poeira a pé, sabe-se lá a que horas, pelos caminhos que vêm dar ao meu lugar. Entretanto o papel perdeu-se, há-de ter ido parar ao lixo no meio dos embrulhos velhos, e por culpa da minha palermice o médico sempre teve de voltar.
Entretanto eu não dormia mais na minha cama. E não era por esquisitice minha, não era por ter nojo dele. É que simplesmente já não cabíamos ali os dois. Debaixo de tanta gordura, eu não estranhava o meu homem. Reconhecia-o, o que era pior. E estranhava-me a mim. Lembro-me que no princípio eu contava, naturalmente, que também fosse engordar. Esperei muito tempo, a olhar para as pernas, para a barriga, mas estava tudo na mesma. E para cúmulo ele, que então já nunca me dava um beijo, que passava o tempo todo calado a ver televisão sem som, quando estava menos triste, chamava-me ao pé dele, puxava-me um braço, e dizia-me que eu estava mais magra. Não era por mal, claro. Era a maneira de ele me agradecer. Eu era magra e saudável, ele era gordo e doente, a vida corria-me nas veias e fugia das dele, e mesmo assim estávamos juntos, mesmo assim eu estava com ele. O meu homem sempre teve um modo simples de mostrar que percebia as coisas.
Escolhi tudo o que estava mais à mão, tudo o que o velho me disse que era mais fácil de arranjar. Eles tinham trazido um caixão com eles, tamanho grande, devia dar. Eram homens práticos, afinal. Saíram-me pela porta fora, arrancaram decididamente uma espécie de caixote enorme da carrinha todo-o-terreno, e voltaram a entrar, desta vez sem cerimónias, deixando um rasto de terra na tijoleira do chão. A minha casa era toda estreita. Tivemos de arrastar a consola, de levantar a passadeira do corredor. A porta da rua tinha ficado aberta. A filha da vizinha já se chegava à cancela, de pescoço esticado, espantada com a movimentação. É que os meus cangalheiros começavam a ficar preocupados. A porta do quarto era tão estreita, havia que estudar a melhor maneira de tirar o corpo dali e enfiá-lo no caixão. O novo dizia que o mais fácil era pegar no falecido, carregá-lo ao colo como um bebé frio e gordo, sair do quarto e só depois metê-lo no caixão. Mas o velho, num repente de sensibilidade, protestou que a ideia era degradante, que o morto devia sair do quarto arrumado, onde é que já se viu, despachar um defunto no corredor. Claro que isso tudo já não tinha nada a ver comigo, eu era apenas uma viúva inútil, e aquilo eram segredos da profissão.
Fui respirar ao terraço. O gato tinha resolvido voltar mais cedo do que o costume, trazia o pescoço arranhado, o pêlo todo manchado de sangue e de ferrugem, devia ter sido algum arame. Alguns metros abaixo, no meio do caminho, as minhas vizinhas coscuvilhavam e espreitavam-me disfarçadamente, como sardaniscas ao sol. Dentro do quarto, os homens berravam. A coisa estava difícil. O morto no caixão era muito pesado e o espaço era apertado para grandes movimentações. Reparei que afinal eram muito mais fortes do que eu tinha pensado, conseguiam virar o caixão para cá e para lá e resmungar um com o outro ao mesmo tempo, sem perderem o fôlego.
O caixão, largo de mais, ia e vinha mas mãos deles, duríssimo, meio entalado, a esmoucar-me as traves da porta, cada vez com mais força, cada vez com mais lanço. De vez em quando, a cara do morto aparecia, em sobressaltos, com um sorriso frio que se tornava eterno na minha memória. Senti de perto o cheiro a suor dos homens. Falavam cada vez menos e grunhiam cada vez mais, como dois bichos. O esforço arrancava-lhes das dobras um líquido amarelo e viscoso. Não sei se foi isso que me fez reparar. Encostei-me à consola, de costas, de modo que via tudo. E a rigidez do caixão do meu homem, que nem sequer era dele, coitado, a rigidez forte emprestada ao caixão do meu homem, a roçar o estuque das minhas paredes, a arrombar-me a porta, lembrou-me, com um baque, o tempo em que a rigidez era outra, total, dele, por mim adentro. No segundo em que eu sustive a respiração e apoiei as mãos atrás, à toa, no tampo frio do mármore, rebolou um jarro, caiu, quebrou, mas eu tive uma recordação digna do meu homem. Uma recordação do que ele fora, e não do cadáver que todos pensavam que ele era agora, nem da doença que o apodrecera. Os homens olharam-me assustados, interromperam-se, olharam os cacos no chão e olharam o corpo, como se procurassem estilhaços. Estavam embasbacados perante o brilho dos meus olhos e a minha repentina palidez. Foi então. Não sei o que me deu. Soltei uma gargalhada, uma gargalhada enorme, a maior gargalhada da minha vida toda. O gato bufou-me, ameaçado, os homens espetaram com o caixão no chão e as vizinhas chegaram-se-me à porta, para esclarecer o barulho.
Foi então que eu ganhei uma fama de viúva alegre.