10 de abril de 2016

A gaveta escondida #1: "UM CIÚME"

Numa gaveta esquecida, entre cedês dos Take That, frufrus para o cabelo e disquetes obsoletas, descobri alguns pequenos contos que escrevi entre os dezasseis e os vinte e dois anos. Não lhes falta nenhum dos habituais pecadilhos da literatura escrita na juventude: repetições de ideias, lugares-comuns, imagens empoladas, influências descaradas… Ao mesmo tempo, alguma coisa mais que o amor de mãe me diz que há algo neles. Uma ou outra imagem conseguida, uma ou outra frase bem amanhada.
Aqui os vou transcrever, sem mudar uma vírgula ou uma grafia que seja.
Começo por “Um ciúme”, uma historiazinha rabiscada nas últimas páginas do caderno de História da Língua. Estaria, portanto, no meu quarto ano da faculdade e teria uns frescos vinte aninhos. De que modo consegui navegar com sucesso entre as fascinantes mudanças quantitativas em sílaba final e as não menos fascinantes alternâncias temáticas nos radicais e ao mesmo tempo produzir esta história perversa, que eu acreditava estar à medida de uma emoção shakespeariana e ser digna de dar novos sentidos à expressão “O ciúme é um veneno”, permanecerá para sempre um mistério. Acrescento só que a este se seguiu a escrita de “Outro ciúme”, que permaneceu inacabado e haveria de ser a perspetiva do rapaz. Enfim, deliciem-se, fustiguem a rapariguinha que eu era e… já agora, ninguém quer um cafezinho?


UM CIÚME

Há alguma coisa errada, comigo ou com ela. Porque, afinal, não posso entender aquela desenvoltura no andar, os seus olhos desmedidos de orgulho, a elegância com que se move, uma elegância que tem pouco a ver com a graciosidade frágil das virgens, muito menos com a sensualidade das devassas, quase nada com o porte viril e seguro das atletas. Forçoso é descobrir nenhum deles e todos eles naqueles passos firmes sem serem pesados, rápidos sem pressa, leves sem serem fracos, cadenciados sem indolência. Só assim poderei compreender o que se passa com ela. E, sobretudo, a razão daquele esgar de vitória, que, sendo mínimo, resulta imperceptível para um homem desatento... e opressivo para uma mulher enciumada. Um ricto fascinante, modesto, de triunfo fácil, que lhe enche o rosto inteiro, lhe sublima as feições, que não são belas, lhe entorna um manto de majestade por todo o abaixo do seu corpo e da sua alma. Inabalável, permanente como as mãos, que ela tem de artista, não finas, não grossas, não rudes, não esbeltas, comedidamente vigorosas e macias, hábeis e ternas. Ah, mas com as mãos dela eu sei lutar... Só eu acaricio o rosto que ela desejou sem nunca ter, só eu afago os cabelos em que ela sonhou enrodilhar os dedos. Agora, essa expressão, onde está a sua razão de ser?... E eterna e irremediável como a sua presença...
Não, minto. Ela altera-se, às vezes, mas numa forma ainda mais perturbante. A minha rival passa, cheia de uma distracção que não é alheamento nem impostura, só um ar de calma concentração, e acontece ver-me. Ela sorri, então, embora não devesse fazê-lo. Embora eu, certamente, não o fizesse no seu lugar. E o seu sorriso é como o trovão que sucede ao relâmpago, o aguaceiro depois da nuvem escura, o grande sismo que sempre surge depois dos abalos mais ingénuos. Porque, invariavelmente, me esbofeteia com a torrente imensa do seu manancial interior. Eu não posso dizer se ela finge ou é absolutamente sincera. Só sei que, maldade e carinho, indiferença ou assombro, tudo vem de enxurrada naquele sorriso, numa prodigiosa manifestação de força natural. Só não sei se me apanha sempre desprevenida, ou sou eu definitivamente inepta e fraca para lutar contra a corrente. Por que é que eu não consigo responder ao sorriso com o sorriso, ao cumprimento com o cumprimento? Por que é que me deixo ofuscar por essa muralha de dentes incertos, não tão branca quanto a minha, cercada por esses lábios grossos, não tão frescos quanto os meus?... Porque eles salientam por contraste o que de irreprimível e belo vem do seu interior?... E acontece-me recordar as fotografias que se vêem dos vulcões em actividade: como são secas e severas as crateras, e no entanto como a lava jorra por elas pujante e ardente...
Então não consigo enfrentar o seu sorriso. E, o que é pior, compreendê-lo. Ela tem fama de praticar actos de bondade, e todos a admiram, mas sem a amar. Porque o amor é o reconhecimento não racional da bondade de outrém, e boa ela não é por natureza. A bondade dela é como um paramento. Porque, repito, ela não é boa, ela apenas pratica actos de bondade. E saber isso aumenta a minha irritação, o meu nervosismo, talvez a minha insegurança. É que, finalmente, o meu amor realizado pode ter sido o seu mais recente e bem conseguido acto de bondade. E só pensá-lo faz resvalar o meu chão, leva-me a chorar por dentro, confunde os meus sistemas em convulsões de desespero. Ah, os beijos dele não mentem... São beijos de amor, eu sei, que os conheço bem. Mas, será que esse amor é para mim?... Ele repete que sim, e a sua mão caminha pelo meu braço tenro, porém com a força que conviria a um braço robusto, como os dela, ou aventura-se nos meus cabelos, com uma avidez táctil que seria para uns cabelos crespos como... Não, não pode ser.
Eu sei que sou bonita, meiga, carinhosa. Não há sorriso nenhum, por mais marcante, por mais imponente, que me possa desvanecer os traços. Não há. Contudo, ela aí está mais uma vez. Ei-la que caminha para mim. A firmeza não rígida habitual no andar, os olhos que renovam brilho e força em cada pestanejar e, à frente de tudo, o seu sorriso, vanguarda mais poderosa e aguda do que nunca. Desvio o olhar. É a primeira vez que o faço, inconscientemente, sem sequer confiar nessa estratégia de retirada. Sou cobarde, e, na sua fuga, o meu olhar tropeça, lamentavelmente, no meu amor. E eu posso, antes de cegar de raiva e medo, ver no seu rosto desmaiado, na sua boca balbuciante, a mesma perturbação que aquela mulher me impõe. Meu Deus... E eu tento reconstituir nervosamente a fluidez sedosa do meu cabelo, repor no olhar dele a regularidade geométrica das minhas feições. Mas ele é só para ela, ou antes, para esse sorriso aberto que a magnetiza e lhe idealiza a expressão. Mas esta mulher é bela... Como pude eu iludir-me? Que hei-de agora fazer?...
Mas ela é duma misericórdia opressora, afasta-se sob um pretexto que dirige especialmente a mim, adoçando subitamente o sorriso, que se torna ainda mais afiado e insuportável. Mal consigo responder-lhe com uma banalidade qualquer, e, ao fazê-lo, é utilizando o magro e último reduto das minhas forças. E ela então desaparece temporariamente para praticar mais um acto de bondade em meu favor, por certo mais uma bondade que me estrangula. Reparo na desolação do meu amor. As suas linhas sublimes converteram-se numa amálgama pastosa de traços grossos, como se tivesse cometido um excesso terrível, como se estivesse prostrado num estado comatoso. Recuperá-lo ou recuperar-me? Há um beijo triste entre nós, uma troca de cansaços, incapacidades, abdicações, que se torna mais intenso, não porque a nossa exaustão nervosa permita o desejo, mas porque, num ensaio tonto de eutanásia, nos mordemos, como se tentássemos encontrar veneno um no outro. Até que ela interrompe o nosso abraço ridículo, mas certamente não por indiscrição. Pelo contrário, ela é neste momento a imagem perfeita da justa medida. Simplesmente, a força do seu sorriso vibra em nós, penetra-nos, e arde. Ela transporta algo nas suas mãos, algo insignificante, pelo menos em contacto com os seus dedos seguros de delicadeza e força. Algo que me estende com a tranquilidade de uma estátua grega, e neste instante marmóreo ela suplanta qualquer perfil antigo. Pressinto então que no seu sorriso convergem os tempos, as ideias, as emoções, e que é toda essa herança contraditória, toda essa riqueza impertinente, que lhe confere o equilíbrio, lhe anula qualquer princípio de desagregação, a salva do ciúme que, a rigor, deveria ser ela a sentir. Percebo isto, o que não me impede de me sentir rendida, vexada, sob o seu sorriso.
Seria bom que ela fizesse qualquer gesto normal para a circunstância, que por um segundo o despeito se mostrasse nos seus olhos, que lhe fugisse uma carícia tonta, ainda que leve, para a face do meu amor, definitivamente amortalhado na sua impotência. Mas não. É só para mim que ela olha, embora eu não saiba com certeza se é a mim que ela dá importância, ou ao que o seu olhar em mim põe. Ah, é preciso pegar na chávena, a chávena que ela gentilmente me oferece. E beber sobre os soluços de mágoa. O líquido sabe-me à angústia de saber que ela mo trouxe, que ele viajou entre o seu seio sereno, onde parecem adormecidos sentimentos sobressaltados como os meus. Como ela é bela... E eu acabo de beber, engolindo sobre as minhas pernas desfalecidas, as minhas pernas lindas e envergonhadas, de que já não compreendo, à vista das suas, que parecem as colunas dóricas de um templo, a utilidade.
Mas... onde está agora o seu sorriso? Por que o recolheu ela, por que está séria de repente?... O seu rosto fechado, ameno, quase terno, de uma concretude implacável... Nunca assim aconteceu de todas as vezes que ela me trouxe, generosa, a chávena de café. Pergunto-me se transpareço por mim fora. Decerto, desde o início. E eu reúno as minhas energias e quero perguntar-lhe por que age desta maneira, sob uma lógica que não é a minha, a de toda a gente. Não consigo. Mas, se é possível compreender duas coisas ao mesmo tempo, compreendo agora que ela retirou o sorriso, como um punhal após o golpe derradeiro, e que ela me tem vindo, calmamente, a envenenar.

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