18 de abril de 2016

A gaveta escondida #5: "A PRAGA"

Aos dezasseis anos, as leituras abundantes de livros policiais e fantásticos, juntamente com o visionamento precoce de filmes de terror (obrigada, Pai!), começam a dar os seus frutos e, paulatinamente, o estranho entra nos meus textos. Aqui vai o conto “A praga”, revelando todas as marcas da imaturidade na alegoria um tanto repetitiva, no exagero de adjetivos e numa ou noutra sintaxe duvidosa. Mas enfim; nem tudo seria mau. Um ano e meio depois concorri com ele a uns Jogos Florais e arrecadei uma inesperada Menção Honrosa. Não me lembro se ganhei uns cobres, acho que não; mas fiquei convencidíssima de que um dia seria escritora… Uma foto da época, com os "manos" Pedro e Miguel.

A PRAGA

Ao fundo da sala, debaixo das três janelas, podres nos caixilhos e empoeiradas nas vidraças, fica o antigo contador entalhado. Destaca-se da uniformidade suja, da semi-obscuridade provocada e obsessiva, apenas pelo ar polido, que consegue prevalecer às rugosidades da madeira, às falhas dos incrustados. Parece, no meio de catacumbas, uma ara arruinada e sagrada. A ele se dirige um homem, de quem não se põe em dúvida, apesar de curvado, a altura. Ela devia outrora ter sido imponente, devia ter concedido ao seu possuidor uma aparência de titã. Agora só lhe aumenta o declínio, como acontece com certas árvores velhas de que, reparando na ogiva tombante dos ramos, se comenta a decrepitude. Mas este velho não é decrépito: grassa-lhe pelas feições rudes uma erva rala, branca, incerta, mas conserva nas pupilas curtas um laivo de astúcia morna. É, pois, árvore que morre aos poucos, sugada pelos fungos que a cobrem, ponteada de pequenas setas de sol.
Chega ao móvel a passos grandes e soldados de gigante encapuzado, só que o capuz é da relíquia duma samarra ocre, de aldeão. Quase roçando, a barriga empina-se-lhe expectante e as órbitas, de perfil, iludem crescer também: pelo rosto do velho, assim em frente do móvel-ara, vai uma ânsia, um pasmo, uma reverência de sacerdote. As suas extremidades peludas, estendidas ao tampo do altar de carvalho, são bem membros de presbítero, transfiguram-se de disformidade em sublime por obra do zelo. Nas paredes trabalhadas do contador salientam-se agora as arestas das gavetas – ao todo, uma dúzia de sacrários, oferecendo-se simples ao tacto do velho-padre. Ele escolhe, com requintes de apaixonado, mais minúcia de sábio, porque os gestos transbordam de decisão, de ciência, de noção. Está já aberta a do meio, dentro não há escrínias de veludo debruadas a ouro; cheira a azedo e o forro é de papel manteiga, finíssimo, roído. O cálice da oblação é um largo frasco de vidro, espesso e sujo. Não tem tampa, a boca foi abafada por uma rodela de plástico, ajustada com borracha. Dentro rodopia um turbilhão, mais vivo e enérgico que um espírito; as sombras minúsculas e dinâmicas de que é composto mimam, pelso volteios rapidíssimos, uma só essência poderosa. A verdade é que são moscas, dezenas, centenas de moscas, melgas, varejas num só frasco, e em cada uma das gavetas há mais frascos assim cheios.
O espólio cresce sobre a tampa do contador, disposto em filas pelas mãos hábeis do velho. Não resta espaço, algumas patenas ficam por ora guardadas, ciosamente, no respectivo sacrário. O velho desprende do bolso um cartucho húmido e uma colher de alumínio, pousa-os na borda do móvel. Vai pegando em cada frasco com ares de criador, de artista, e o seu olhar é de cálculo comovido. A dose certa só é fornecida (desobstruído o único canal) após exame meditado, para que a cada insecto caiba o que lhe compete. O homem sussurra uma gargalhada, salivosa e rouca, não só de velhice, de catarro, também de emoção e orgulho.
Uma súbita serenidade se apoderou do sacerdote, dos membros distendidos, de que agora quase poderiam pender teias de aranha. Reflecte com ar habituado, mas mais grave, porque de momento especial. Chegou o momento? Há muito, há sempre que o velho colecciona com fervor as suas moscas. Em criança, caçá-las na armadilha articulada das falanges e esborrachá-las sob um godo achatado era a iniciação imberbe e torpe à suprema afeição. O amor veio aos poucos, seguindo-se à admiração, ao devaneio, ao cuidado. Tratou de especializar a técnica, exacerbar a diligência: já não as enclausurava na mão, colhia-as como lepidópteros, só que em sacos de plástico, e deles as levava aos frascos. Viveiros transparentes e furibundos, de fundo arenoso, onde o açúcar e a mica se entranhavam. Conservados, aumentados numa vida em que foram mais que simples ocupação – um fito sagrado. Nem mulher, nem filhos, nem trabalho, distraíram o velho das cruciais obrigações do sacerdócio: banir os insectos mortos ou doentes para que os novos e bons prosperassem, penitenciar os desassossegados amputando-lhes a asa ou a pata, repartir as castas por recipientes diversos, distribuir o açúcar que só os melhores sabiam procurar. Assim se formou uma tribo, um povo eleito unido em reacção vertiginosa como um preparado de sódio.
Contemplativo, o homem solitário espia o seu tesouro. Rejuvenescem-lhe as pupilas ao reflectirem esses minúsculos milhares de partículas furiosas como átomos. Certifica-se ainda de que as escolhas foram certas, de que está perante os melhores. Não pode ter a certeza, e as pálpebras enrugam-se de inseguras. Mas tudo está consumado, o acto adivinha-se na potência do olhar, o gesto fervilha na ponta dos dedos. Os sacrários já não podem conter essa viva matéria divina, esse murmúrio gasoso de aclamação.
Agora há, no peitoril das janelas, filas e filas de frascos. Arrombadas todas as gavetas, o contador tem o ar de cripta violada por mãos bárbaras. Ilusão: a dois passos, o sacerdote cauto vela ainda o seu sagrado conteúdo. Depois, uma a uma as tampas são retiradas, os gargalos voltados ao céu. As moscas hesitam por momentos, multidão de fiéis habituados. Porventura receiam a perda do conforto eucarístico: doravante estão por sua conta. Mas logo é o exílio alado, e escurecem em zumbido o céu nítido. O homem, esgazeado, ferve nos olhos uma lágrima, um soluço na garganta. Todo ele é olhos para o enxame livre que criou.
A sala parece mais escolhosa e escura, como se sobre ela pesasse o abandono. Até o velho mingou na sua estatura e na sua divindade. Felizmente compreende, como dono dos mistérios, que o retorno ao humano era inevitável, a divindade não se pode guardar. Mas realmente há nele uma desconfiança de profeta traído, uma tristeza calcada de mártir. Os forros gastos das gavetas são páginas brancas de escrituras mudas. Enquanto, a pouca distância, a praga escreve sinais confusos no céu.

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