23 de junho de 2016

Novas Histórias com Santos - pré-publicação



As biografias dos santos continuam a seduzir-me como matéria ficcional para a experimentação dentro do género do conto. Aqui vai “João”.

JOÃO

Os erros de Herodes Antipas.
Tomou como amante a mulher do seu irmão, o que não é lícito. Errou ao jurar que daria o que não sabia que lhe iriam pedir. Errou também porque fingiu tristeza mandando-me matar, escusando o pecado com o juramento e dizendo que apenas queria contentar a esposa. Errou porque me quis matar logo que me prendeu, mas teve medo do burburinho do povo, que me tinha por homem de grande santidade, e assim esperou a melhor ocasião. Errou porque me quis matar, combinando com Herodíade a melhor altura, celebrando a festa do seu nascimento, para a qual convidou todos os maiores do reino. Errou porque me mandou matar depois de sentir prazer e alegria ao ver dançar diante dos convidados a rapariga dissoluta que pediu a minha cabeça num prato de ouro. Errou porque disfarçou com o cumprimento da promessa a crueldade ardente que lhe escavava o coração.
Assim que os meus discípulos me enterraram, junto ao sepulcro dos profetas, limpando as lágrimas compadecidas às mangas rotas das túnicas, logo o meu corpo começou a resplandecer com muitos milagres. Por isso o imperador Juliano mandou que me desenterrassem os restos, os queimassem e derramassem as cinzas sobre o campo. Assim foi. Os gentios dispersaram as minhas ossadas e queimaram os meus olhos, que me haviam arrancado ao cadáver. Aconteceu que alguns homens que por ali iam a passar não consentiram que se perdessem tamanhas relíquias e trataram de recolher e guardar o que puderam, nuns toscos cestos de vime. Apareci então a duas mulheres que seguiam em peregrinação e disse-lhes onde haveriam de encontrar a minha cabeça escondida, que Herodes tinha mandado enterrar longe do meu corpo, temendo que, ficando os dois juntos, eu pudesse ressuscitar. Como realizei essa proeza, escapando aos rigores da morte, não saberia dizer-vos; mas assim foi. E elas a encontraram, a minha pobre cabeça, rasgada, coberta de terra, muito intacta, embrulhada nuns restos de panejamentos que eram as minhas vestes do deserto, ainda que manchados pelo sangue, roídos pelos vermes e quase desfeitos pela podridão. E depois de a limparem a deram a uns monges de vida santa, que a levaram num saco para muito longe. Estes a entregaram depois a um homem pobre, que a levou à cidade mais próxima e a enterrou numa cova funda, que os cristãos do local veneravam discretamente, ajoelhando na poeira e traçando com os dedos trémulos o sinal da cruz. Depois de muito tempo, veio morar junto àquela cova um santo chamado Marcelo, e a esse apareci de novo, sustentado por anjos de luz a sete palmos do chão. Até que o imperador Valente, mais infiel que todos os infiéis, mandou desenterrar a minha cabeça e ordenou que a colocassem em cima de um carro, que a transportaria para muito longe. Esteve o carro sem se mover, por muito que se aguilhoassem os bois; e assim se viram constrangidos a deixarem a cabeça naquele lugar, onde uns homens simples de muitas virtudes embrulharam a minha cabeça num pano de seda e, entendendo depois que não eram dignos de ter em seu poder tão precioso tesouro, a enviaram ao bispo de Alexandria, que a recebeu com grande veneração e edificou em redor dela uma basílica magnificente. E, segundo diz a história, Santa Escolástica rezou junto à sepultura do meu santo crânio, e o seu irmão São Bento rezou e chorou com ela, entrelaçando ambos as finas e amantíssimas mãos. 
E assim se ergueu uma basílica, e depois outra, e outra, e mais outra, e uma após outra as cidades cristãs consagraram-se à minha santidade, Alexandria, Roma, Génova, Amiens, Porto, Constantinopla… E o meu dedo, aquele que tocou a fronte do Salvador no momento do seu batismo, despejando-lhe sobre a formosa cabeça o jorro de água do Jordão, viajou pela Judeia, transpôs os montes Alpes, chegou a França. Anos ou séculos depois, uma senhora de grande virtude desejou muito uma relíquia minha; vendo que não a alcançava, fez promessa de não comer alimento até que a Deus aprouvesse contemplá-la com o milagre. Após vários dias sem comer, definhando já com as mortificações, viu sobre o altar um dedo de maravilhosa alvura, com três gotas de sangue, e, entendendo que era meu, mandou edificar mais uma igreja.
Se esse dedo era meu ou não, não sei dizer. E sei que não conto todas as coisas que foram, ou como foram.
Eu gostava era de falar-vos da minha mãe, em cujas entranhas pressenti nas entranhas da virgem Aquele que seria maior do eu; a minha mãe, que cantava canções de humildade, enchendo devagar a almotolia, cujas mãos e cujos olhos nunca envelheceram. Gostava de falar-vos do meu pobre pai, mudo de assombro, todo curvado, acendendo devagarinho as candeias. Gostava de falar-vos do tempo do deserto, das pedras, das serpentes, das peles das feras fazendo cobertura magra contra o frio. Dos dias da pregação, das multidões de olhos ávidos. Das palavras ásperas, tão justas como cortantes como o machado da ira, que me saíam da garganta sem que eu as entendesse claramente. Gostava de poder descrever-vos a face Dele. A face Dele. A voz Dele. Gostava de poder falar-vos, até, daquela noite magnífica, o cárcere, o frio pétreo, o ministro infernal segurando a adaga, o medo breve, o instante em que tudo se cumpriu no gume certo da lâmina.
Fui escola de virtudes, doutrina de vida, forma de santidade, regra de justiça e disciplina de fé. Fui maior do que um homem, igual aos anjos, perfeição da lei de Moisés, voz dos apóstolos, silêncio dos profetas, candeia do mundo, pregoeiro do Juiz, amado de Cristo e medianeiro de Deus. Mas tudo o que tenho para vos dar, como relíquias do que fui, são estas memórias de cada poeira de mim.
Eu estou aqui para lembrar os erros de Herodes. Eu ficarei para lembrar os erros de Herodes. E muito é de notar quão vã é a honra deste mundo, e quão breve.